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Ciência em Dia
O futuro da natureza humana
Marcelo Leite
editor de Ciência
Um pequeno e precioso livro saiu há
coisa de um ano na Alemanha: "Die Zukunft der menschlichen Natur" (O
Futuro da Natureza Humana, editora Suhrkamp, 125 págs.). Seu autor é um
dos maiores filósofos vivos, Jürgen Habermas. Muita gente na academia tupiniquim torce o nariz para ele, mas não a ponto de deixar de reconhecê-lo como
um herdeiro -com voz própria- da famosa Escola de Frankfurt.
Pouco tempo depois, já neste ano, uma
obra algo mais alentada foi publicada
nos Estados Unidos, "Our Posthuman
Future" (Nosso Futuro Pós-Humano,
editora Farrar, Straus and Giroux, 256
págs.). Quem a escreveu foi Francis Fukuyama, o conservador que anunciou há
uma década a tese polêmica de um ponto
final hegeliano na história.
Dada a coincidência, tanto mais extraordinária pela envergadura, manda a
prudência que ao menos em hipótese seja tomada como sintoma, mais do que
acaso. E um sintoma que cresce em importância quando se tem em conta que
os dois expoentes como que interromperam o curso normal de suas preocupações, que decerto não incluiriam espontaneamente as implicações arcanas do
DNA recombinante e das células-tronco
embrionárias, não no ano em que o
mundo se chocou com o 11 de setembro.
Deixo Fukuyama para outra feita e me
detenho em Habermas. Em "Die Zukunft der menschlichen Natur", Habermas se concentra sobre uma ameaça
mais insidiosa que a própria guerra para
a subsistência da noção de espécie humana -em sentido ético-universal, e
não biológico. Mas, paradoxalmente, é
no caráter aleatório dessa base biológica
que ele vai buscar o fundamento daquela
humanidade, ora ameaçado pelas biotecnologias (que fique provisoriamente
de lado a questão cabeluda de definir se
essa "natureza humana" é de fato universal ou historicamente construída).
Em se tratando de um filósofo alemão,
e ainda por cima Habermas, o argumento até que não soa dos mais complicados.
É o mesmo que ele já empregara a favor
da proibição da clonagem humana: a
conformação genética de cada pessoa,
por ser fruto do acaso (ninguém tem como escolher a metade dos próprios genes que legará para os filhos, muito menos os efeitos de sua interação com os do
outro genitor), é uma condição imprescindível da igualdade entre todas as pessoas que vêm ao mundo.
Desse ponto de vista, nasceria em desvantagem a pessoa que tivesse ou deixasse de ter determinados genes por escolha
de outrem, fosse pai ou cientista, por ter
sido clonada, sofrido intervenção genética ou passado por seleção embrionária.
Tudo aquilo que alguém recebia dos
pais por escolha deles, até o advento da
engenharia genética, ou o que se costuma resumir como "criação", podia cedo
ou tarde tornar-se objeto de contestação,
na medida em que a pessoa construía a
própria biografia. Genes são outros 500,
pois podem ser tecnologicamente escolhidos, agora, antes do nascimento, ou
seja, antes da entrada no próprio universo social e da linguagem.
Para Habermas, essa assimetria ameaça dissolver o próprio alicerce da vida social, a igualdade. Diante disso, nem mesmo a filosofia acabrunhada pelos tempos poderia calar: "As novas tecnologias nos impõem um discurso público sobre o correto entendimento da forma de vida cultural enquanto tal. Os filósofos não
têm mais bons motivos para deixar esse objeto de disputa para os biocientistas e
os engenheiros entusiasmados com a ficção científica." Fukuyama que o diga.
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