São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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Ciência em Dia

O futuro da natureza humana

Marcelo Leite
editor de Ciência

Um pequeno e precioso livro saiu há coisa de um ano na Alemanha: "Die Zukunft der menschlichen Natur" (O Futuro da Natureza Humana, editora Suhrkamp, 125 págs.). Seu autor é um dos maiores filósofos vivos, Jürgen Habermas. Muita gente na academia tupiniquim torce o nariz para ele, mas não a ponto de deixar de reconhecê-lo como um herdeiro -com voz própria- da famosa Escola de Frankfurt.
Pouco tempo depois, já neste ano, uma obra algo mais alentada foi publicada nos Estados Unidos, "Our Posthuman Future" (Nosso Futuro Pós-Humano, editora Farrar, Straus and Giroux, 256 págs.). Quem a escreveu foi Francis Fukuyama, o conservador que anunciou há uma década a tese polêmica de um ponto final hegeliano na história.
Dada a coincidência, tanto mais extraordinária pela envergadura, manda a prudência que ao menos em hipótese seja tomada como sintoma, mais do que acaso. E um sintoma que cresce em importância quando se tem em conta que os dois expoentes como que interromperam o curso normal de suas preocupações, que decerto não incluiriam espontaneamente as implicações arcanas do DNA recombinante e das células-tronco embrionárias, não no ano em que o mundo se chocou com o 11 de setembro.
Deixo Fukuyama para outra feita e me detenho em Habermas. Em "Die Zukunft der menschlichen Natur", Habermas se concentra sobre uma ameaça mais insidiosa que a própria guerra para a subsistência da noção de espécie humana -em sentido ético-universal, e não biológico. Mas, paradoxalmente, é no caráter aleatório dessa base biológica que ele vai buscar o fundamento daquela humanidade, ora ameaçado pelas biotecnologias (que fique provisoriamente de lado a questão cabeluda de definir se essa "natureza humana" é de fato universal ou historicamente construída).
Em se tratando de um filósofo alemão, e ainda por cima Habermas, o argumento até que não soa dos mais complicados. É o mesmo que ele já empregara a favor da proibição da clonagem humana: a conformação genética de cada pessoa, por ser fruto do acaso (ninguém tem como escolher a metade dos próprios genes que legará para os filhos, muito menos os efeitos de sua interação com os do outro genitor), é uma condição imprescindível da igualdade entre todas as pessoas que vêm ao mundo.
Desse ponto de vista, nasceria em desvantagem a pessoa que tivesse ou deixasse de ter determinados genes por escolha de outrem, fosse pai ou cientista, por ter sido clonada, sofrido intervenção genética ou passado por seleção embrionária.
Tudo aquilo que alguém recebia dos pais por escolha deles, até o advento da engenharia genética, ou o que se costuma resumir como "criação", podia cedo ou tarde tornar-se objeto de contestação, na medida em que a pessoa construía a própria biografia. Genes são outros 500, pois podem ser tecnologicamente escolhidos, agora, antes do nascimento, ou seja, antes da entrada no próprio universo social e da linguagem.
Para Habermas, essa assimetria ameaça dissolver o próprio alicerce da vida social, a igualdade. Diante disso, nem mesmo a filosofia acabrunhada pelos tempos poderia calar: "As novas tecnologias nos impõem um discurso público sobre o correto entendimento da forma de vida cultural enquanto tal. Os filósofos não têm mais bons motivos para deixar esse objeto de disputa para os biocientistas e os engenheiros entusiasmados com a ficção científica." Fukuyama que o diga.


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