São Paulo, domingo, 30 de março de 2003 |
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Birô Internacional de Pesos e Medidas luta para encontrar solução para a questão do padrão universal do quilograma, um cilindro de platina e irídio cuja massa paradoxalmente parece variar UM QUILO DE PROBLEMAS
Robert Matthews
Num cofre sob um pátio perto de Paris repousa
um pequeno e brilhante cilindro de metal precioso -e um grande embaraço científico.
Uma vez por ano, três pessoas se juntam do
lado de fora do cofre, giram suas três chaves simultaneamente e abrem a porta. Eles vêm para verificar se o
pequeno e brilhante cilindro ainda está lá. Uma vez que
constatam o fato, fecham a porta, se despedem e partem
-imaginando por quanto tempo a ciência terá de passar por esse ritual risível.
Primeira escolha Parecia simples demais no começo. A escolha do material estava clara. Silício era o favorito, com a indústria de microchips gastando enormes volumes de dinheiro na produção dos cristais mais puros e perfeitos do material. Conhecendo a distância entre os átomos, os pesquisadores podem descobrir o volume exato de silício necessário. Quanto à forma a ser escolhida, uma esfera parecia ideal. Ela pode ser polida à lisura de escala atômica, dando um raio e um volume precisos, e não teria pontas que possam ser lascadas. Amostras das esferas de silício que eram necessárias para um quilograma-padrão foram feitas nos laboratórios alemães de padrões de qualidade (PTB) em Braunschweig e então transformadas nos objetos mais redondos do mundo por Michael Kenny e seus colaboradores australianos da Organização de Pesquisa Científica e Industrial em Lindfield, Nova Gales do Sul. O polimento foi até o ponto de conseguir que a maior irregularidade na superfície das esferas tivesse cerca de 500 átomos de altura, o equivalente a aplainar a Terra até que a montanha mais alta tenha dez metros. A partir daí, a coisa toda ficou mais difícil. Apesar de ter talvez a estrutura cristalina mais estudada entre todos os elementos, o silício ainda conseguiu causar uma surpresa desagradável. No meio dos anos 90, equipes da Alemanha, Itália e Japão se encontraram para comparar suas estimativas do número de átomos nas amostras de silício e, para seu horror, descobriram que a amostra japonesa tinha trilhões de átomos a menos. Investigando o interior do silício usando raios X, Richard Deslattes, do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia em Gaithesburg, Maryland (EUA), descobriu onde eles tinham errado: os cristais "perfeitos" de silício estavam cheios de cavidades da ordem de micrômetros (milionésimos de milímetro), provavelmente criadas por bolhas de hidrogênio aprisionadas lá durante a fabricação. A superfície imaculada das esferas também se mostrou capaz de atrair uma camada atômica de óxidos e vários contaminantes, afetando a massa e dimensão da amostra. Ninguém normalmente iria se preocupar com tais efeitos sutis, mas, se as esferas de silício substituírem o quilograma de Sèvres, suas propriedades terão de ser replicadas com máxima precisão. Os metrologistas se orgulham de medir tudo que está acima do infinitesimal, mas o Projeto Avogadro está levando sua criatividade ao limite. Técnicas tradicionais de medição, como interferometria óptica, são precisas até alguns milhares de diâmetros atômicos, mas as exigências do projeto são de que a esfera de silício seja determinada com precisão mil vezes maior. Fazer isso exige lasers ultra-estáveis e muito cuidado. Até mudanças nas condições meteorológicas afetam as medidas: a pressão atmosférica afeta o índice de refração do ar pelo qual a luz do laser passa, de modo que as medições exigem sua execução no vácuo. É um pesadelo metrológico, mas progressos estão sendo feitos. "No presente a incerteza relativa é de cerca de 150 partes por bilhão", diz Kenny. A meta agora é reduzir a incerteza para cerca de 20 partes por bilhão. "Isso é exequível, mas de modo algum fácil", diz. "Levará anos de esforço -e milhões de dólares." Tudo isso faz até os defensores do Projeto Avogadro acreditarem que deve haver um meio mais simples. Terry Quinn, diretor do BIPM e responsável pelo quilograma de Sèvres, compartilha a crescente convicção dos metrologistas de que o melhor candidato para substituir aquele pequeno cilindro brilhante em seu cofre está numa estratégia diferente: a balança de Watt. A idéia básica, desenvolvida cerca de 20 anos atrás por Bryan Kibble no NPL, é definir o quilograma em termos de duas coisas que os metrologistas já podem medir muito precisamente: voltagem e resistência. Em essência, a balança de Watt é um sistema incrivelmente sensível de escalas, com o quilograma num prato e um campo eletromagnético influenciando o outro. Definir o quilograma, então, se torna uma questão de medir a força eletromagnética necessária para compensar o peso do quilograma, dividindo o resultado pela aceleração gerada pela gravidade. Processo traiçoeiro Até parece que é simples. Na prática, medir a força do campo é um processo traiçoeiro que exige aparelhos quânticos de última geração para atingir a precisão necessária. O resultado seria uma definição do quilograma em termos da constante de Planck, que liga as propriedades elétricas da balança aos processos quânticos usados para medi-las. Como no Projeto Avogadro, transformar essa idéia simples num padrão realizável está se revelando um pesadelo. A balança é assombrada por uma coleção de demônios metrológicos que vai de campos eletromagnéticos descontrolados ao efeito de marés causado pela Lua. Todas as medições precisam ser feitas num vácuo completo, isolado de perturbações externas. Depois de uma década de esforço por laboratórios de metrologia na Europa e nos EUA, a precisão da balança de Watt está agora a um fator de dez do nível necessário para substituir o quilograma de Sèvres. Embora a balança de Watt permaneça como candidata à redefinição do quilograma, poucos a descreveriam como o paradigma da elegância. Como Quinn aponta, seria muito mais fácil se os átomos não fossem tão pequenos, a ponto de alguém precisar de uma quantidade tão grande para fazer um quilo. Isso parece descartar a idéia de simplesmente contar o número de átomos exigidos para fazer um quilograma. Ou será que não? No início dos anos 1990, Michael Glaeser no PTB teve uma idéia brilhantemente simples: criar uma corrente de átomos, coletá-los num recipiente equilibrado sobre uma balança e ver quanto tempo levaria para fazer um quilograma. Na prática é muito mais complicado que isso, mas não tanto. A idéia original de Glaeser envolvia o disparo de íons de um elemento como ouro por uma série de magnetos, para formar um raio de partículas carregadas -em outras palavras, corrente elétrica. Glaeser e seus colegas estão agora tentando fazer sua idéia funcionar. Até agora, o maior problema tem sido criar uma corrente grande o bastante: "Começamos com íons de ouro, mas a corrente é só [da ordem" de microamps", diz Glaeser. Ele agora planeja substituir ouro por bismuto, que evapora mais facilmente quando aquecido, para fornecer correntes maiores. Também precisa encontrar meios de reduzir a velocidade dos íons conforme eles se aproximam do coletor, para que não sejam perdidos. Haveria algum modo ainda mais inteligente de definir o quilograma? Davidson, do NPL, certamente acha que sim. "Idealmente a definição seria tão elegante quanto as do metro e do segundo", diz. "Talvez tenhamos procurado uma resposta muito "high-tech". Talvez haja algo realmente óbvio que não percebemos." É uma suspeita refletida na última linha do site oficial do NPL sobre esse que é o mais irritante dos desafios metrológicos: "Qualquer idéia melhor num cartão postal, por favor". Próximo Texto: Micro/Macro: Censurando a pesquisa Índice |
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