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Micro/Macro
Censurando a pesquisa
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Existe, hoje, um cabo de guerra entre a
ciência de ponta, em particular a pesquisa em genética, e órgãos legislativos e
pessoas capazes de influenciar a opinião
pública. De um lado, a pesquisa caminha
rapidamente, com os cientistas tentando
aperfeiçoar técnicas de clonagem que,
em princípio, serão usadas no combate a
várias doenças. De outro, questões éticas
vão surgindo e influenciando um movimento contra essas pesquisas.
A meu ver, a confusão é tamanha que
fica difícil distinguir entre ficção e fato,
ou entre resultados concretos e medos
mitopoéticos, como o da transformação
do homem em monstro, ou mesmo em
seu próprio destruidor. Mesmo com o
passo acelerado das pesquisas, a imaginação está muito além da realidade. Ou
do que pode ou não vir a ser possível.
No entanto, falar do que é ou não possível em ciência é arriscado. A história
nos mostra o quanto nossos sonhos mais
ousados acabaram por se tornar realidade: Leonardo da Vinci projetou máquinas voadoras, pára-quedas e submarinos, séculos antes de eles serem inventados. (Aliás, em uma visita recente ao Museu de Ciência e Indústria em Chicago,
assisti a um documentário sobre a construção do pára-quedas de Da Vinci. Os
engenheiros usaram os planos originais,
que funcionaram magistralmente.)
Os exemplos são muitos. Talvez seja
justamente por isso que existam tantos
profetas do apocalipse genético. O cientista político Francis Fukuyama proclamou recentemente que o advento da engenharia genética e de medicamentos
como Prozac anunciam o início de uma
era "pós-humana da história": não só
corpos, mas mentes também poderão
ser moldadas pela nova medicina. Adiciono a explosão do uso da droga Ritalin,
dada para milhões de crianças que supostamente sofrem de distúrbio de déficit de atenção, ou seja, que têm dificuldades de concentração e tendências rebeldes. A droga ajuda a controlar os sintomas, efetivamente domesticando as jovens feras. Bill Joy, co-fundador da companhia de computadores americana
Sun, concorda com Fukuyama, chamando a atenção para o desenvolvimento da
nanotecnologia, a possibilidade de construir máquinas de dimensões moleculares capazes de serem implantadas no
corpo humano. Segundo ele, "será esse o
caminho de destruição da humanidade".
Essa é a opinião dos que a revista
"Scientific American" recentemente
chamou, muito apropriadamente, de
"tecnocínicos". Eles recomendam, em
maior ou menor medida, o controle ou
veto completo de pesquisas em engenharia genética e mesmo, no caso de Joy, de
toda a pesquisa em robótica e nanotecnologia. Joy, e milhões de outros, temem
que a união da genética com a física finalmente dê ao homem o poder de criar
criaturas híbridas, meio gente meio máquina, capazes de feitos incríveis e, possivelmente, terríveis. No clássico da literatura gótica Frankenstein, da inglesa
Mary Shelley, um médico cria um ser vivo a partir de pedaços de vários cadáveres. Mas o resultado é monstruoso, e
quando o monstro exige do médico a
criação de uma companheira, o médico
recusa. Ele prefere destruir a sua criatura
e ser morto por ela do que criar toda uma
raça de monstros. Ecos dessa história
ressoam até hoje no imaginário humano.
Mas a realidade talvez não seja assim
tão lúgubre. O objetivo principal das pesquisas em clonagem não é a criação de
criaturas tenebrosas, mas a cura de inúmeros males que afligem milhões de seres humanos. A maioria absoluta dos
pesquisadores em engenharia genética
não tem interesse em clonar seres humanos. Talvez a técnica seja do interesse de
casais que não possam ter filhos e não
queiram adotar, mas ela não tem fins curativos. O mesmo não é verdade com as
células-tronco e seus possíveis usos. Banir ambas indiscriminadamente é fechar
os olhos ao sofrimento de milhões.
Mais ainda, acredito que proibir a pesquisa científica simplesmente não dá
certo; mais cedo ou mais tarde alguém
irá redescobrir o que houver sido banido, seja em outro país, seja clandestinamente. A Inglaterra, por exemplo, tem
uma política muito liberal com relação à
clonagem. É inútil proibir a pesquisa
unilateralmente. Quem perde é o país
que a proíbe. Juntamente com os cidadãos que precisam de seus benefícios.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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