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Micro/Macro
Einstein, ícone da ciência
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Ninguém ficou muito surpreso
quando a revista norte-americana
"Time" elegeu Einstein a "Pessoa do Século". Afinal, ele já havia aparecido na
capa da revista cinco vezes, mais do que
qualquer outra pessoa. Mesmo assim,
muitos acharam um absurdo um cientista ter sido escolhido, em meio a tantos
candidatos. Por que não Gandhi, Charles
Chaplin, Winston Churchill, Picasso,
John Lennon? Tenho certeza de que o leitor poderia encher esta coluna com seus
candidatos.
Mas foi Einstein o escolhido, um físico
teórico cuja obra científica é compreendida por poucos especialistas. Todo
mundo associa Einstein à famosa fórmula E=mc2 e sabe que sua teoria da relatividade demoliu os conceitos de espaço e
tempo absolutos, criando uma nova visão de mundo, em que diferentes observadores, em movimento relativo, têm
percepções distintas da realidade.
O que poucos sabem é que a teoria busca justamente relacionar as percepções
de diferentes observadores, mostrando
como eles podem comparar suas medidas sem conflitos. A teoria é, na verdade,
uma teoria de absolutos: as leis da física
independem da percepção particular de
observadores em movimento relativo.
Elas são as mesmas para todos.
O que a teoria da relatividade faz é dar
voz a cada observador, mostrando que
sua percepção da realidade é perfeitamente válida e equivalente à de outros.
Ela democratiza a percepção do real.
Einstein levou essa democratização para além da física. Pacifista, renunciou à
cidadania alemã para protestar contra
sua crescente militarização. Sionista,
preocupava-se com o futuro dos judeus
numa Europa repleta de anti-semitismo.
Acreditava que o grande mal do mundo
era sua divisão em fronteiras, cada país
ilhado dentro da sua. Se pudesse, ele as
aboliria, junto com os passaportes.
Quando, em 1919, uma das previsões
de sua teoria da relatividade geral foi
comprovada -a luz de estrelas distantes
é desviada ao passar perto do Sol devido
à curvatura do espaço em sua vizinhança-, Einstein foi imediatamente catapultado à fama internacional.
O mundo estava se recuperando de
duas tragédias, a Primeira Guerra Mundial e a terrível epidemia da gripe de 1918,
que matou entre 20 e 50 milhões de pessoas. Com a realidade enegrecida, as pessoas olharam para esse decifrador dos
segredos do cosmo como uma espécie de
profeta, alguém que conseguiu entender
a natureza como nenhum outro.
O pressuposto esoterismo de suas
idéias, lidando com espaço e tempo, com
a velocidade da luz e a cosmologia, o átomo e suas propriedades, certamente
contribuiu para tal. O cientista tornou-se
profeta, ao mesmo tempo humano e semidivino.
Em uma capa da "Time" de 1979, o
centenário do seu nascimento, o rosto de
Einstein aparece em "close", circundado
de galáxias e estrelas. A imagem o mostra
envelhecido, sábio, olhos profundos e
tristes, alguém que vislumbrou os segredos mais profundos e que sofreu com os
males do mundo. Como contraste, a capa de 1946 mostra também o rosto de
Einstein, mas atrás dele se vê uma nuvem
em forma de cogumelo típica de uma explosão nuclear, com a fórmula E=mc2 escrita em meio à fumaça. Ou seja, logo
após a Segunda Guerra, que terminou
com as explosões nucleares em
Hiroshima e Nagasaki, Einstein aparece
como responsável pelo uso da ciência
para fins destrutivos. Um pulo grande,
disso até a pessoa do século! A participação de Einstein na construção da bomba
foi praticamente inexistente. Ele escreveu uma carta ao presidente Roosevelt
em 1939, sugerindo que os EUA iniciassem estudos sobre a produção de bombas antes que os nazistas o fizessem.
A famosa fórmula, que descreve parte
das transformações de energia que ocorrem no núcleo atômico, foi proposta
completamente fora do contexto de uma
bomba e não é usada em sua construção.
Mas como é sempre muito mais fácil culpar alguém do que entender o que de fato ocorreu, a mídia achou o seu bode expiatório.
Imagino como Einstein, que morreu
em 1955, deve ter se sentido ao ver sua
imagem usada desse modo. Talvez a capa de 1979 e a eleição dele como pessoa
do século tenham sido a forma de a revista se desculpar por seu sensacionalismo
em 1946. Um pouco tarde demais, mesmo em tempo relativo.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do
Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do
livro "O Fim da Terra e do Céu"
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