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Micro/Macro
A borboleta e o caos
Marcelo Gleiser
especial para a Folha
Existe uma frase que ficou famosa na
descrição das propriedades caóticas
do clima: o bater das asas de uma borboleta na África pode causar chuvas no Paraguai. Pelo menos, essa é uma entre milhares de versões.
O importante não é realmente onde está a borboleta ou onde vai chover, mas o
fato que o minúsculo deslocamento de ar
causado pelo bater de suas asas pode
causar efeitos na atmosfera turbulentos o
suficiente para serem sentidos a milhares
de quilômetros de distância. Conheço
poucos exemplos de "globalização" melhores do que esse. Quando o assunto é
clima, o mundo é mesmo unido. A atmosfera não reconhece fronteiras.
Por trás da estranha relação entre a
borboleta e o clima está uma propriedade fundamental da física, a não-linearidade. Quando um sistema é linear, um
estímulo é respondido na mesma intensidade, como no caso de uma criança
empurrada em um balanço. Quanto
mais forte o empurrão, mais alto ela vai
(isso só é verdade para pequenos ângulos). Se o balanço fosse não-linear, um
pequeno empurrão poderia catapultar a
criança em órbita. Meio dramático, mas
é verdade.
O clima é regido por equações não-lineares. Isso explica por que é tão difícil
prevê-lo, especialmente por muitos dias.
Vários efeitos têm de ser computados,
complicando as previsões.
Essa limitação é o grande embate das
simulações feitas em computadores para
estudar o efeito estufa e suas consequências climáticas. Segundo a maioria absoluta dos modelos, o aumento da concentração de gases na atmosfera já está causando o seu aquecimento gradativo.
A década de 1990 foi a mais quente dos
últimos 150 anos. A política de ambiente
norte-americana é lamentável, especialmente sabendo-se que em torno de 25%
do gás carbônico do planeta é produzido
lá. Talvez seja necessária uma catástrofe
nacional para que as coisas mudem. Ela
possivelmente já começou, ameaçando
um dos símbolos ecológicos mais importantes dos EUA, a borboleta monarca.
Levando em conta as maravilhosas
borboletas que existem no Brasil -pelo
menos as que conseguiram escapar dos
pratos com tampo de vidro vendidos para turistas e exportados para o mundo
inteiro (quando esse absurdo será proibido?)- a monarca nem é tão especial.
O que a torna fascinante é o fato de ela
ser uma espécie migratória.
Centenas de milhões de borboletas escapam do inverno nos EUA indo para o
México. A migração é dividida pelas
montanhas Rochosas, a cordilheira que
corta a América do Norte como uma espinha dorsal. As monarcas que vão para
o México são as que estão do lado leste
das Rochosas. As que estão do lado oeste
vão para o sul da Califórnia.
Ver milhares de borboletas voando é
um espetáculo inesquecível. Às vezes,
elas obscurecem o céu. É incrível imaginar que criaturas tão frágeis, pesando
meio grama, sejam capazes de voar por
milhares de quilômetros. Não só isso,
elas sabem, todos os anos, exatamente
para onde ir, sempre retornando aos
mesmos lugares.
Um ano significa quatro gerações de
monarcas. De alguma forma, a tradição é
transmitida de geração a geração. Na ausência de mapas, talvez as borboletas
usem algum outro mecanismo de navegação. O biólogo Fred Urquhart sugeriu
que elas seguem a difusão em direção ao
sudoeste de sua comida favorita, o soro
leitoso secretado por certas plantas, incluindo a soja. Ninguém sabe ao certo.
Estudos climáticos mostram que o
efeito estufa está ameaçando os nichos
ecológicos mexicanos para onde migram
as monarcas do leste. Modelos prevêem
que, se nada for feito para controlar a
emissão de gases durante as próximas
décadas, e se a temperatura global continuar a subir, instabilidades climáticas
vão causar um aumento na precipitação
(chuva e até neve) nessas regiões muito
além da tolerância das frágeis borboletas.
A situação piora ainda mais com o desflorestamento que já ocorre na região.
Alguns especialistas acham que as borboletas vão encontrar outros lugares para passar o inverno, talvez mais ao sul,
mas isso é apostar no desconhecido. Infelizmente, nós somos uma espécie que
só sabe reagir quando não tem outra saída. Só espero que não sejam as pobres
borboletas a pagar pela nossa estupidez.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
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