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MISTICISMO POP
Na onda de Madonna, novos adeptos reinterpretam tradições do judaísmo; para Henry Sobel, "é marketing vulgar"
Cabala light conquista leigos e irrita rabino
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Sabedoria hermética, mística judaica, à simples menção da palavra "cabala" imaginava-se a figura de um vetusto rabino, barbas
longas, todo de preto. Um sábio.
Sempre foi assim.
De repente, aparece Madonna, a
"material girl" hipervitaminada,
origem ítalo-católica, querendo
ser chamada de Esther e dizendo-se cabalista. Aí vem a atriz Demi
Moore e também se reivindica da
cabala. E os lábios mais sensuais
do rock and roll (já um tanto
murchos, é verdade), Mick Jagger, 61, abrem-se para proclamar
uma tardia conversão. Quando o
show biz rendeu-se aos encantamentos da tradição hebraica
(bem verdade que em nova embalagem) já era sabido: a moda
chegaria logo aqui. E assim foi.
Na última quarta-feira, 35 alunos aplicados chegaram pontualmente às 18h30 ao prédio em Pinheiros (zona oeste de São Paulo),
para assistir a mais uma aula do
curso Cabala 2, ministrado pelo
rabino Shmuel Lemle.
Começa a pregação. "Por que
está escrito na Torá [designação
judaica do Velho Testamento]
que Deus criou o mundo em seis
dias e descansou no sétimo? Alguém acha que Deus ficou cansado e pensou: tenho de ir para
Trancoso, descansar? É claro que
não." Trancoso, o balneário descolado da Bahia? Num sermão?
Engenheiro formado pela Pontifícia Universidade Católica, solteiro, sem filhos, Shmuel é herdeiro do rabino Henrique Lemle, já
morto, que foi referência religiosa
do Rio de Janeiro, "uma espécie
de Henry Sobel carioca", define o
filho, numa alusão ao presidente
do rabinato da Congregação Israelita Paulista. Alusão estranha,
como se verá mais adiante.
É com metáforas simples, com
parábolas e brincadeiras que o carismático Shmuel Lemle conta as
histórias bíblicas e transmite os
ensinamentos da cabala. Não é tarefa para qualquer um.
Segundo a mística judaica, as 22
letras do alfabeto hebraico são (e
só elas são) as próprias letras que
o Criador usou para gerar o Universo. É necessário entendê-las,
para atinar os desígnios do Criador, certo? Errado. Para quem
não conhece o hebraico, basta
"scannear" as letras com olhos,
como diz Lemle. "E vem a Luz."
Na origem dessa versão pop da
cabala está o rabino Rav Berg, que
dá aulas no Kabbalah Centre de
Los Angeles, Centro de Estudos
da Cabala, com mais de 50 sedes
em todo o mundo. Duas delas estão no Brasil (Rio de Janeiro e São
Paulo), fundadas por Lemle, que
teve aulas com Berg.
Foi o Kabbalah Centre americano que recrutou Madonna e Demi
Moore. É o Centro de Cabala de
Lemle que recrutou, ao sul do
Equador, as versões delas: a apresentadora de TV Glória Maria e a
cantora Marina Lima.
O poder de marketing dessas
conversões é imenso. Nunca, desde que foi criada há milhares de
anos, falou-se tão abertamente
sobre a cabala. Nunca foi tão fácil
tornar-se cabalista.
Reza a tradição que o misticismo judaico é para poucos. "Está
no Talmud [conjunto de interpretações das leis mosaicas] que é necessário ter mais de 40 anos para
estudar a cabala", lembra o rabino
Sobel. "É preciso amadurecer, ter
sólidos conhecimentos judaicos",
diz Sobel, ele mesmo um estudioso da cabala. Lemle, lembre-se,
tem apenas 36 anos.
A oposição do rabinato não incomoda a turma de alunos de
Lemle. Para fazer o curso Escada
da Transformação, dez aulas ministradas às quartas-feiras, das
20h30 às 22h30, pagam-se R$ 500.
É pré-requisito obrigatório ao Escada ter feito os cursos Cabala 1 e
Cabala 2. No Cabala 1, são oito aulas a um custo de R$ 400. No Cabala 2, aprende-se Reencarnação
Básico (sim, o judaísmo é reencarnacionista) em dez aulas. Pagam-se R$ 500.
Na última quarta-feira, 55 alunos do Escada ouviam Lemle contar a história bíblica de Yossef
Hatzadik, José, o Justo, e de como
ele resistiu a fazer sexo com uma
linda mulher por respeito ao marido dela.
Depois do relato empolgante
(mesmo!), Lemle deitou falação
sobre o controle das emoções e a
liberdade. E defendeu as restrições: não é bom usar drogas. Não
se deve manter relações sexuais
durante o período menstrual da
mulher. O único método contraceptivo aceitável é a pílula anticoncepcional. Camisinha, nem
pensar. Aborto é inaceitável, mesmo em caso de estupro. Masturbação: não pode.
A empresária Roberta Matarazzo, 61, reagiu: "Mas nem em caso
de estupro o aborto é permitido?"
Calmo, o rabino respondeu que
mesmo da lama pode nascer uma
flor delicada. Convenceu a aluna.
Conservador? Careta? Pouco
importa. A empresária Natalie
Klein, 28, dona da loja NK Store e
neta do rei do varejo, Samuel
Klein, das Casas Bahia, acompanha Lemle há um ano e meio. Judia, sempre foi de freqüentar sinagoga. Segue as tradições.
Natalie tornou-se cabalista depois de perder para o câncer um
irmão querido, há três anos. "Encontrei alívio e conforto na cabala", diz ela, que hoje realiza um
trabalho voluntário voltado para
crianças com câncer.
Todas as quintas-feiras, Natalie
está no Projeto Felicidade, que
proporciona entretenimento aos
pequenos doentes. "Só isso faz valer a dor que eu sofri com a perda
do meu irmão."
Que as perdas alimentam a fé, é
sabido. Com a nova cabala não
poderia ser diferente. Foi depois
de se separar do estilista Tufi
Duek, dono da grife Forum, que
Nídia Duek se aproximou da cabala. Católica, ela converteu-se ao
judaísmo aos 15 anos, quando conheceu o marido com quem ficou
casada por 21 anos.
Nídia trabalhava todos os dias
colada ao marido. Separada, as
duas filhas já crescidas e independentes, sentiu o peso da solidão.
Por não aceitar o papel de vítima
da separação, de "coitadinha", resolveu partir para a cabala do rabino Lemle. Hoje, estuda o tempo
todo arte, filosofia e, claro, cabala.
Até o meio do ano que vem, volta
a trabalhar no ramo da moda.
"Me aguarde", promete.
Sobre tantas dores e as esperanças despertadas nos alunos de
Lemle, o rabino Sobel teoriza:
"Talvez essa cabala light sirva para preencher a carência espiritual
de alguns, mas não deixa de ser
um pseudomisticismo. Isso não é
cabala. É marketing vulgar. É superstição. É deturpação da religião. É irreligião." Pode ser.
Por via das dúvidas, vão abaixo
algumas regras que Natalie Klein
segue, inspiradas na cabala. Que
mal têm, se consolam?
- "Nunca conte seus sonhos a
ninguém." (Adeus, Freud!)
- "Todos os dias, ao acordar,
antes de mais nada, lave as mãos."
- "Nunca tome o vinho puro.
Misture-o com água."
- "Use a fita vermelha no pulso
esquerdo."
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