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GILBERTO DIMENSTEIN
Brasil de Deus
Entende-se melhor a degradação brasileira assistindo ao
filme "Cidade de Deus", lançado
em circuito comercial na sexta-feira passada, do que ouvindo os
candidatos a governador ou a
presidente, que, de modo geral,
repetem obviedades ou lançam
promessas mirabolantes sem
mostrar com detalhes a sua viabilidade.
Nos programas eleitorais, os
candidatos, de olho nas pesquisas
sobre os anseios dos brasileiros,
insistem na associação do emprego com a segurança e batem na
tecla óbvia de que mais gente no
trabalho significa menos gente na
cadeia. Uma associação tão genérica pode até embalar os mais desavisados, desinformados sobre
como se formam as redes que levam à criminalidade -um movimento que se inicia, conforme
demonstram recentes estudos de
neurobiologia, desde os primeiros
abusos, dos mais diversos tipos,
sofridos pela criança.
O filme é apenas uma alegoria
do Brasil, contaminado de alto a
baixo pela banalização da morte,
pelo crescimento descontrolado
da criminalidade e pela falta de
perspectivas profissionais e educacionais entre os jovens nas regiões periféricas.
A insegurança do "Brasil de
Deus" é provocada essencialmente pela incapacidade de integração de milhões de jovens nas escolas e no emprego, usina de mão-de-obra para o crime organizado.
Mais do que a ineficiência da
polícia, a "bomba da juventude"
explica a disseminação da delinquência e a transformação de
vastos territórios em terra de ninguém, onde só se entra com autorização de traficantes -essa ordem vale para policiais, religiosos, assistentes sociais e cineastas.
Como a percepção dos artistas
costuma estar sempre à frente da
percepção dos políticos, a "bomba
da juventude" será apresentada
também, na próxima semana, no
cinema, com a exibição de "Uma
Onda no Ar" -o filme conta a
aventura de jovens que criaram
uma rádio em uma favela de Belo
Horizonte.
Uma exibição especial desse filme, a ser realizada na próxima
quarta-feira, vai mostrar como a
violência está refinando o olhar
da sociedade para a busca de soluções baseadas em experiências
dentro e fora do Brasil.
Depois do lançamento, será entregue para os presidenciáveis
uma proposta de uma política para a juventude, elaborada há cinco meses por especialistas em educação, psicologia, assistência social, formação profissional, saúde
e lazer. O projeto, coordenado por
Viviane Senna, está sintetizado
em documento endossado por alguns dos mais importantes ícones
do PIB econômico e cultural brasileiro, bem como pelos principais
representantes do chamado terceiro setor.
A novidade é que nunca (e
"nunca" aqui não é exagero) se
percebeu com tamanha clareza a
"bomba de juventude" e nunca se
reuniu tanta gente tão qualificada em busca de alternativas; muitas das alternativas não são mirabolantes -são, em muitos casos,
experiências já em andamento
que necessitam apenas de ganhar
maior dimensão.
Muitas entidades não-governamentais se transformaram em laboratórios de experimentações
pedagógicas com jovens e vêm alcançando notáveis resultados.
Usam-se iscas como música, artes
plásticas, informática, dança,
ecologia, literatura, grafitagem,
teatro, esporte, qualquer coisa
que eleve a auto-estima.
Dentro e fora do país, abundam
casos de melhoria de escolas públicas a partir da mudança de
currículo e do treinamento de
professores e de diretores, assim
como do envolvimento da comunidade. São, na maioria das vezes, experiências clandestinas,
desconhecidas do setor público.
Aliás, a pesquisa de alguns desses exemplos conferiu, na sexta-feira, o prêmio especial Eco (mais
importante condecoração na
área de responsabilidade social,
da Câmara Americana do Comércio) ao Banco Itaú, patrocinador da série Raízes e Asas -o
projeto é da educadora Maria
Alice Setúbal, que levou o banco
da família a sistematizar e a divulgar boas práticas educativas.
Transformar tais casos em políticas públicas é algo urgente. A
razão óbvia está no Censo Escolar, divulgado na semana passada, em que se aponta o crescimento veloz do ensino médio; agora
são 8,7 milhões de alunos. Exigem-se ainda mais recursos para
o ensino médio do que para o ensino fundamental -e o que se vê,
no geral, é a péssima qualidade
de ensino.
Arma-se aí mais uma bomba:
são milhões de pessoas estimuladas a estudar, refinando as suas
expectativas. Sonham com um
curso superior e, mais, com bons
empregos. Sem perspectivas para
a juventude, o "Brasil de Deus"
será sempre comandado pelo diabo da violência.
P.S. - Atenção, especialistas em
segurança dos candidatos: o documento a ser divulgado na próxima semana defende que seja
criada uma política de renda mínima para os jovens concentrada
nos guetos e condicionada à permanência na escola. Exige como
contrapartida serviços comunitários. Se combinarem políticas federais, estaduais e municipais,
além do apoio de empresas e do
terceiro setor, não será tarefa impossível (nem cara) descontaminar, em dez anos, as áreas mais
violentas das grandes regiões metropolitanas. A meta seria, em
quatro anos, oferecer essa bolsa
de um salário mínimo para 3 milhões de jovens.
E-mail -
gdimen@uol.com.br
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