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GILBERTO DIMENSTEIN
São Paulo vai ser refundada
Quase ninguém acredita
-e, por muito tempo, não
vai acreditar-, mas um dos
principais laboratórios de recuperação social no Brasil está num
dos mais visíveis focos de decadência do país: o centro da cidade
de São Paulo.
Não se acredita porque, em primeiro lugar, uma das modas nacionais é afirmar que o país está
metido em uma pasmaceira social e que nada acontece. Pouco se
conhece das articulações comunitárias e das políticas públicas inovadoras.
Em segundo lugar, os moradores de São Paulo acham, no geral,
que a cidade não tem mais jeito e
está condenada à degradação.
Pela primeira vez, São Paulo está alterando a forma como se expandiu desde seu nascimento, em
1554, quando se limitava a uma
escola de jesuítas que ensinava
indígenas no topo de uma colina.
Até 1875, pouco se alterou naquela paisagem povoada por 35
mil habitantes, quase todos aglomerados na mesma colina, protegidos das enchentes: com a chegada dos imigrantes, viu-se um ritmo de crescimento urbano inédito na história mundial, sempre
em direção à periferia e abandonando o que ia ficando para trás.
A região metropolitana tem hoje 17 milhões de pessoas espremidas, acuadas e sitiadas. De símbolo de progresso, transformou-se
num dos melhores cartões-postais
da crise brasileira, tomada não só
pela violência e pelo desemprego
como por engarrafamentos, favelas, meninos de rua, ambulantes.
A decadência tornou-se especialmente visível - e dolorosa-
no centro. Lugares que antes
eram apresentados como sofisticados, civilizados, aprazíveis, viraram cenário de guerra e de consumo de drogas.
Nas imediações da Luz -bairro que abrigou, por muito tempo,
ícones do refinamento e da riqueza-, chegou a nascer um território quase independente: a "cracolândia", onde se comprava e se
consumia crack durante o dia.
Orientados pela editora de treinamento da Folha, Ana Estela de
Sousa Pinto, dez jornalistas recém-formados ou ainda cursando
faculdade, integrantes do programa de trainees, investigaram a
consistência dos planos de revitalização do centro -convidaram-me para ocupar, nesse projeto, o
cargo de "palpiteiro oficial". O
trabalho será divulgado na próxima quarta-feira, com o título de
"Volta ao centro em 450 anos".
Os trainees concentraram-se,
basicamente, no que está planejado e com recursos assegurados, no
que está saindo do papel ou funcionando. Viram que se forma,
na região, o mais imponente cinturão cultural do país -com salas de exposições, bibliotecas, cinemas, museus, teatros e salas de
concerto- a partir da recuperação de prédios degradados. Repartições públicas, dispersas, são
estimuladas a se instalar no centro pelos governos estadual e municipal; universidades seguem a
mesma trilha.
Atraídos pela oportunidade de
morar em apartamentos grandes
e baratos -e também pelos novos ares-, os descolados e a classe média voltam para a região.
O movimento populacional é visível, mas ainda está engatinhando. É o suficiente, porém, para
sustentar a aposta de que, preparando-se para completar 450
anos em janeiro de 2004, São
Paulo está prestes a ser refundada
graças à mudança inédita de seu
crescimento e ao reencontro com
sua história.
Será a terceira fundação. A primeira fundação ocorreu em 1554,
com os jesuítas; a segunda, com a
chegada dos imigrantes. Por ter
morado em Nova York, passei a
acreditar que uma metrópole,
apesar de todos os problemas que
enfrenta, consegue melhorar -e
é, se bem que em diferente ritmo,
o que já está acontecendo aqui.
A melhoria também é estimulada porque a cidade nunca teve
tanto poder: além de abrigar Fernando Henrique Cardoso, que,
aliás, terá seu escritório no centro,
concentra os núcleos decisórios do
PT, do PSDB e do PMDB. É onde
mora o grupo de empresários, intelectuais e sindicalistas com mais
influência sobre a futura cúpula
do poder federal.
Podemos dizer, sem nenhuma
arrogância, que São Paulo, síntese da diversidade brasileira, é a
segunda capital da República.
Revigorar o centro é mais do
que uma simples inovação urbana. Cria-se, nesse movimento, um
modelo. A operação foi tramada
por empresários e executivos.
Uma prova do refinamento da
articulação comunitária é o fato
de banqueiros e bancários (ou seja, a CUT) se terem unido num
projeto para cuidar dos meninos
de rua que perambulam pela região. Colheram-se propostas com
os melhores urbanistas de várias
partes do mundo.
O movimento de recuperação
urbana entusiasmou políticos, especialmente no PT e no PSDB,
que dominaram o governo estadual e o municipal, investindo na
reforma de prédios e na transferência de repartições públicas.
Com recursos públicos e privados,
surgiu, exatamente na "cracolândia", num prédio abandonado (o
da estação Júlio Prestes), uma orquestra sinfônica, aplaudida
mundialmente.
Apesar de dar os primeiros passos e de todos os problemas que
persistem, a terceira fundação de
São Paulo, favorecida pela combinação das mais diversas parcerias, revela o melhor (e talvez único) modelo de pacto para o desenvolvimento social brasileiro.
P.S. - Lula vai pagar um preço
alto por ter ajudado a disseminar
a sensação de que a revolução social no Brasil só vai ocorrer depois
da chegada ao PT à Presidência
-deu mais motivo de cobrança.
Tal discurso, conveniente eleitoralmente, despreza um fato: muitos dos avanços sociais hoje disseminados se devem a experiências
realizadas nos municípios do PT.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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