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DANUZA LEÃO
Vida de gato
Eu e meus gatos, Haroldo e
Dinorah, estamos vivendo
uma crise de relacionamento que,
acho, nunca vai se resolver.
Ele chegou primeiro, tomou
conta da casa e ficou logo íntimo;
quando chega um amigo, ele
brinca com os cordões dos sapatos
e pula no colo com uma desenvoltura de dar inveja.
Já a chegada de Dinorah foi estressante: tendo passado por situações traumáticas (foi abandonada na rua), passava os dias escondida debaixo da cama ou do
sofá e só ousava aparecer quando
anoitecia; aí Haroldo, bem tirano, dava uma corrida nela, que
saía apavorada e se escondia de
novo. Tudo por ciúmes.
Os dois estão comigo há quase
um ano; nós duas estamos mais
próximas, mas não tanto quanto
eu gostaria (ele não deixa). Às vezes, quando Haroldo está dormindo, ela ousa subir na minha
cama, e quando eu ensaio um cafuné, dois segundos depois ele
aparece, finge que está brincando, dá uns beijinhos no cangote,
crava os dentes e ela sai correndo.
Ele não me preocupa: sabe lutar
pelo lugar dele, por mim (que como sou dele não posso ser de mais
ninguém) e não faz nenhuma espécie de cerimônia: entra no armário, se instala em cima dos
meus suéteres e às vezes deita a
cabecinha em cima da minha
mão de tal jeito que eu não me
mexo para não atrapalhar o descanso dele. E se por acaso pego o
jornal -com a outra mão- ou
ligo a televisão, ele levanta a cabeça e dá um olhar superior do tipo "esse barulho está me incomodando"; e eu desisto, é claro.
Quem me enche de preocupações é Dinorah; tímida e medrosa,
ela quase não se aproxima, e se eu
tento fazer um carinho, foge e fica
me olhando assustada, lá de longe. Eu queria muito que ela entendesse que não deve ter medo
do Haroldo, que eu adoro ela, que
os dois têm os mesmos direitos,
mas acho que ela não entende. Fica só me olhando com aquele
olho lindo, coitadinha.
Outro dia aconteceu uma coisa
que fez meu coração ficar pequenininho.
Dinorah ficou de pé num banquinho perto da janela, botou as
patinhas dianteiras no parapeito
e ficou olhando o mundo lá fora;
um mundo ao qual ela não tem
acesso e provavelmente nunca terá. Olhou por longos minutos a
paisagem, os carros que passavam, depois saiu, se ajeitou na
poltrona e dormiu.
Aí fiquei pensando em como deve ser triste ser gato. Nós podemos
sair, passear, temos amigos, falamos no telefone, lemos, vamos ao
cinema, pensamos, inventamos,
amamos, odiamos, e os gatinhos
nada. Eles têm o espaço da casa
para andar, comem o que a gente
dá, dependem inteiramente de
nós, e a maior aventura da vida
deles é olhar pela janela -e só.
Em compensação, externam
seus sentimentos de maneira clara, de um jeito que nós bem gostaríamos de expor os nossos, mas
não podemos. Eles exigem uma
atenção total e absoluta, avançam em cima de quem quiser roubar um minuto de nossa atenção
e, se ousamos nos distrair com outra coisa que não eles, se retiram e
nem nos olham pelo resto do dia.
No fundo, agem como nós agiríamos se não tivéssemos sido educados a respeitar o espaço do outro,
a vida do outro, a liberdade do
outro etc. etc.
São muitas as diferenças entre
os gatos e os homens; se um dia
você estiver doente ou apenas triste, seu gato não vai sair de perto
de você um só instante. E se você
der todo o seu afeto a seu gato (só
não pode é dar bola para outro),
terá alguém que vai te adorar
eternamente, acima de todas as
coisas, com direito a uma lambidinha no rosto com aquela linguinha que parece uma lixinha.
Deve ser bem bom ser gato.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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