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GILBERTO DIMENSTEIN
O consenso da miséria
Os sequestradores jamais imaginaram que acabariam participando da política
industrial brasileira e que ajudariam nos números da balança comercial, registro da diferença entre importação e exportação.
Na semana passada, essa ajuda
involuntária foi especialmente
notável. Por rádio, jornais e TV,
em horário nobre, foi divulgado o
conselho de sequestradores a uma
de suas vítimas, a atriz Vanessa
Bueno, sequestrada no Rio. Ela
foi aconselhada a não usar automóvel importado. "Vou mudar
de carro", jurou Vanessa.
Há muito tempo, essa cautela,
especialmente em São Paulo, vem
provocando estragos nas vendas
de importados e favorecendo a
aquisição de modelos nacionais.
Estão em alta os carros sem porta-malas fechados (esse espaço do
veículo é usado para conduzir os
reféns). Além de interferirem na
política de importações, os sequestradores já influenciam até
mesmo na preferência do design
automobilístico.
Andar de automóvel hoje, seja
qual for a marca, implica risco.
Ivan Paulo dos Santos é um balconista, proprietário de um automóvel Gol fabricado em 1991. Na
terça-feira passada, ele levou a
mulher, que, grávida, necessitava
de um atendimento urgente, a
um pronto-socorro em São Paulo.
Parou, às pressas, em frente ao
hospital. Voltou correndo para
estacionar melhor e, enquanto a
mulher, aflita, esperava o médico,
ele foi levado.
Por atingir diretamente a elite,
habitualmente alheia às questões
sociais, a onda de sequestros é um
dos ingredientes para a percepção
da urgência de desenvolver
políticas que reduzam a
marginalidade.
O ambiente de desagregação,
no qual a violência é apenas a febre que revela a infecção, é o cenário em que se monta o mais importante movimento de combate
à miséria.
Assim como, no passado, economistas e políticos tiveram de chegar a um consenso sobre a importância da disciplina dos gastos
públicos para combater a inflação -pois não havia mágicas a
fazer-, os formuladores de políticas públicas dos mais diversos
partidos e tendências estão falando a mesma língua.
É gente que, em maior ou menor grau, vai inspirar ações nos
âmbitos federal, estadual e municipal. Estão preocupados em
apontar caminhos para o enfrentamento da violência e em nutrir
capital humano apto a lidar não
só com a sociedade da era do conhecimento mas também com a
escassez de recursos.
O consenso era visível no auditório da Folha, na semana passada, onde ocorreu, em dois dias, seminário sobre a miséria organizado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada); essa
entidade, vinculada ao governo,
está na vanguarda de estudos sobre a pobreza no Brasil.
Estiveram presentes alguns dos
mais destacados pensadores sobre
o tema, assim como operadores
de políticas sociais do governo e
da oposição -pessoas de diferentes partidos, ideologias e níveis de
governo. Na platéia, secretários
estaduais e municipais, além de
representantes de ONGs respeitadas dentro e fora do país.
As divergências eram detalhes.
No essencial, todos concordaram
que apenas crescimento econômico não gera riqueza social e que a
melhor forma de distribuir renda
é investir nas crianças e nos adolescentes. É consenso que dinheiro
para a educação é investimento, a
ser colhido na forma de trabalhadores mais produtivos e de uma
economia mais dinâmica.
O dinheiro é, antes de tudo, malgasto; não chega ao pobre. É drenado em boa parte aos incluídos:
as aposentadorias de funcionários públicos são um exemplo disso. Uma reforma social complexa
é hoje tão urgente quanto uma reforma tributária ou política. Os
programas de renda mínima (a
bolsa-escola e a bolsa-alimentação, entre outros) são uma ponte
para levar o dinheiro diretamente
aos mais pobres. Mas, se não houver uma porta de saída, ou seja, o
desenvolvimento da autonomia
dos indivíduos, vão-se transformar numa esmola permanente. O
recurso deve exigir do beneficiário uma contrapartida, como treinamento profissional, progresso
escolar, cuidados com a saúde ou
melhorias na comunidade.
Há uma superposição de programas, o que significa perda de
dinheiro e de energia.
Ainda são pouco visíveis, mas
surgem, aqui e ali, experiências
no setor público que tentam, ao
mesmo tempo, envolver diferentes atores e romper a fragmentação. É o caso do Projeto Alvorada,
do governo federal, no qual se
junta uma galeria de ministérios,
acoplados a programas estaduais
e municipais. Trabalham-se simultaneamente a promoção social e a promoção econômica.
Merece atenção o que acontece
agora com os programas de renda
mínima na cidade de São Paulo.
Reúnem verbas municipais, estaduais e federais voltadas à melhoria do nível de escolaridade, à intervenção no espaço público e à
profissionalização, sempre em
combinação com associações civis. É o mesmo modelo que o governo do Rio, agora nas mãos do
PT, pretende aplicar.
Essas experiências ainda estão
no começo; seus resultados são,
por enquanto, frágeis. Há inúmeros problemas de gestão (a demora em cadastramentos, por exemplo, faz que a cidade de São Paulo
deixe de receber milhões de reais
para a bolsa-escola) e de falta de
capacitação de funcionários municipais, mas certamente elas são
o paradigma da política social.
Fora disso, é jogar dinheiro fora.
PS -Uma das idéias em discussão é criar uma espécie de mapa
da mina das políticas sociais. Para isso, é preciso cadastrar todas
as famílias que recebem algum
benefício federal, estadual ou municipal. Com base nessas informações, torna-se possível medir
até onde vai a superposição de
programas. O objetivo é criar um
cartão único para todos os recursos distribuídos, não restrito só
aos federais. Talvez seja demais
para a nossa classe política, mas
essa é a proposta mais séria para
quem está preocupado com a racionalidade dos recursos públicos.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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