|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OH VIDA, OH DOR
Amigos dizem que reclamam demais; médicos não acham a causa, mas vítimas sofrem com dores reais
"Poliqueixoso" tem sintomas sem doença
LULIE MACEDO
ROBERTO DE OLIVEIRA
DA REVISTA
Doem a cabeça, as costas, o estômago, o coração acelera, falta ar.
Quando não é uma coisa, é outra.
Não raro, tudo ao mesmo tempo.
O clínico-geral não dá jeito, o
gastroenterologista não encontra
nada, o cardiologista pede uma
batelada de exames, mas manda-o de volta para casa. Se o seu corpo parece estar pior que um carro
enguiçado e médico nenhum descobre o problema, tente considerar uma nova possibilidade: você
pode ser um poliqueixoso.
Poliqueixa é um jargão médico
usado para definir o comportamento do paciente que percorre
diversas especialidades apresentando múltiplos sintomas, mas
cujos exames não revelam nada.
Poliqueixa e hipocondria andam juntas -só que nem sempre
pelo mesmo caminho.
O hipocondríaco típico pode
achar que tem um tumor maligno
no intestino, que já se espalhou
pelo corpo, e que nenhum médico
consegue diagnosticar. O poliqueixoso reclama de dores no estômago, também nas costas, mas
não acha que tem apenas alguns
meses de vida.
"O hipocondríaco sente uma
angústia mais intensa porque se
sente "perseguido" por um órgão,
e a qualquer sinal diferente dessa
parte do corpo ele fantasia a morte iminente. No poliqueixoso, os
sintomas são difusos, simultâneos e nem sempre têm essa carga
catastrófica", afirma o psicanalista carioca Carlos Leal, que estuda
o tema há 20 anos.
Tese de sociólogo
O comportamento poliqueixoso é tão comum que extrapolou os
corredores de hospitais e consultórios médicos e virou tese de sociólogo. Durante os quatro anos
em que trabalhou na Secretaria da
Saúde de Presidente Prudente
(interior de São Paulo), no começo dos anos 90, o sociólogo Sebastião Chammé, 54, observou o
comportamento de pacientes que
pareciam ser "onipresentes".
"Percebi que eles repetiam a
queixa em mais de um local no
mesmo dia. O sujeito era encontrado num hospital público, mais
tarde na fila de algum posto de
saúde e depois ainda concorria
em atendimentos de emergência", conta Chammé.
O sociólogo fez dos 58 casos que
acompanhou uma tese de doutorado apresentada na Faculdade
de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo). Segundo
Chammé, os poliqueixosos têm
duas características: a descrição
metaforizada dos sintomas (não
dizem "dói a barriga", mas "dói a
barriga como se estivessem arrancando um pedaço") e a falta de
consciência do problema.
"O poliqueixoso não se reconhece como tal. O processo acontece de forma inconsciente, e ele
não sabe que o problema pode ser
emocional", explica o clínico-geral José Antonio Atta, diretor-médico dos ambulatórios do Hospital das Clínicas.
Para o psiquiatra José Atílio
Bombana, coordenador do Programa de Atendimento à Somatização da Unifesp (Universidade
Federal de SP), o termo poliqueixoso tem um "quê" de pejorativo.
"É como se fosse apenas um "piripaque", quando, na verdade, esse
comportamento pode estar relacionado a um distúrbio psiquiátrico", diz. O diagnóstico exato seria de uma doença chamada
transtorno multisomatoforme, na
qual o indivíduo "desconta" no
corpo uma série de problemas
emocionais.
O poliqueixoso, porém, não associa sintoma físico com emocional. "O meu problema não tem
nada a ver com a cabeça, não é
psicológico. É físico, dói", explica
a aposentada Elisa*, 69, que atribui as dores nos pés às varizes ou
a uma possível bursite.
Na avaliação médica, ela não está mentindo, porque o poliqueixoso realmente sente o que diz. A
base do problema pode ser emocional, mas isso não significa que
as sensações desagradáveis sejam
invenção.
A aposentada, apesar de não se
ver como poliqueixosa, precisa
constantemente do aval médico
para ficar em paz. "Os médicos
não descobriram nada. Só que eu
não conseguiria voltar para casa
sem ouvir a avaliação de um deles.
Me tranquiliza", diz ela.
Dor, em vez de tristeza
Um traço marcante na maioria
dos poliqueixosos é a capacidade
precária de simbolizar seus sentimentos, segundo Bombana. "Eles
têm um psiquismo muito arcaico,
sonham pouco, fantasiam pouco.
Geralmente as angústias dessas
pessoas se passam no corpo", define o psiquiatra da Unifesp. "Se
ela brigou com o filho ou está mal
porque perdeu o emprego, sente
dor no peito em vez de tristeza."
Algumas vezes, por trás do
comportamento poliqueixoso,
pode realmente haver uma doença. Ansiedade, estresse, depressão, síndrome do pânico e fibromialgia (dores musculares generalizadas) são algumas delas, e
nesses casos a poliqueixa pode até
dificultar o diagnóstico.
"Atendemos aproximadamente
50 a 60 pacientes por dia, e cerca
de 15 a 20 deles apresentam tantos
sintomas que acabamos sem saber o que tratar", diz José Morato,
médico-assistente do Pronto-Atendimento de Pneumologia do
Hospital São Paulo.
Descobrir que o paciente é poliqueixoso pode levar anos, porque
ele não recebe atendimento fixo,
mas percorre várias especialidades em consultórios diferentes.
Além disso, poucos profissionais
de saúde conhecem o transtorno.
Resultado: o profissional não
encontra nada que justifique as
queixas do doente, que, por sua
vez, troca de médico na tentativa
de encontrar a resposta para o seu
sofrimento, alimentando um ciclo vicioso.
Outro complicador é a falta de
apoio da família. "Em casa,
acham que é mania. Na rua, meus
colegas falam que é frescura",
conta o comerciante Paulo*, 56,
que chega a inventar "compromissos", para esconder da família
suas visitas aos médicos.
Oh vida
Para evitar prejuízos, algumas
empresas de saúde desenvolvem
programas isolados preventivos e
de acompanhamento de poliqueixosos.
Uma cooperativa de planos de
saúde criou um personagem inspirado na pessimista hiena
Hardy, de Hanna-Barbera (dona
do bordão "oh dia, oh céus, oh vida, oh azar"), para que o usuário
poliqueixoso se identifique com
suas lamentações. Uma palestra
composta com a teatralização da
rotina de um poliqueixoso já foi
vista por 80 funcionários em duas
empresas. Em uma delas, a utilização do plano foi reduzida em
23%.
Na avaliação do psicanalista
Carlos Leal, tanto o serviço público como o privado deveriam trabalhar com equipes integradas de
saúde. "Um médico capaz de ouvir irá compreender a origem do
sofrimento, para então encaminhá-lo para o tratamento da
doença que pode estar por trás
desse comportamento", diz ele.
* Os nomes foram trocados a pedido dos
entrevistados
Texto Anterior: Comportamento: Homossexuais organizam "beijaço" em shopping center de São Paulo Próximo Texto: Frases Índice
|