|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Discriminado, camelô do trânsito fatura até R$ 1.500 por mês
Alvos freqüentes de xingamento por atrapalharem o trânsito ou incomodarem motoristas, eles dizem que já é natural a execração
Irmãos carroceiros têm renda de R$ 1.500; camelô em cruzamento nos Jardins trabalha com as quatro filhas, todas com ensino médio
PAULO SAMPAIO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Morango, morango, morango. Só morangos selecionados.
Leva quatro caixas, paga
R$ 5. Morango, morango. Olha
a fruta fresquinha. Morango.
Morango, morango, morango."
Ao volante de uma picape
Chevrolet azul turquesa 1981, o
vendedor Hugo Alves de Aquino, 21, 20 km/h, diz que só não
ouve mais xingamentos porque
o alto-falante colocado na capota da cabine abafa outros
sons: "Eu precisava ter três
mães para dar conta de todos os
palavrões", diz Aquino, segurando o trânsito na avenida Higienópolis, região central.
Difícil encontrar um motorista em São Paulo que não se
estresse ao topar com um
"Aquino" pela frente. Ninguém
parece interessado em saber os
motivos que o levaram a estar
sempre puxando o buzinaço.
"É um absurdo deixar uma
carroça dessas rodando", diz,
meio avermelhado, o comerciante Edson Prieto, 36.
Aquino parece tranqüilo: "Eu
estou trabalhando. Saí de casa
às 8h, vou até as 21h", diz o vendedor, que fatura cerca de
R$ 600 por mês.
Disputam com a picape de
Aquino o troféu "pedra no caminho" no trânsito de SP, entre
outros, o limpador de vidro que
trabalha no semáforo (o panfleteiro, o vendedor, o pedinte); o
carroceiro e o manobrista.
"Ligo o ar e deixo o vidro fechado, para não precisar ficar
dizendo não", diz a dona-de-casa Mirtes Freitas, 42, no Itaim.
Os rejeitados falam sobre como é integrar uma espécie de
"outro lado" na aterrorizante
massa motorizada da cidade.
Estelita e o rodinho
Expor-se à execração pública
em um semáforo de Pinheiros é
quase um detalhe na miséria
que o destino reservou para a
limpadora de vidros Estelita de
Jesus, 44. Viúva três vezes, dois
maridos assassinados, um suicida, quatro filhos, dois mortos,
Estelita conta que jamais impinge seu rodinho.
"As pessoas olham feio, têm
medo. Eu também. Eles chamam a polícia, levam meu rodinho", diz Estelita, que, em um
dia bom, ganha R$ 15.
Em família
O baiano Ailton Rocha, 45,
vive uma situação mais estável.
Rocha e suas quatro filhas sempre trabalharam em sinal de
trânsito. Todas completaram o
ensino médio. Uma formou-se
chefe de cozinha e toca trombone. A mais nova, Silvana, 23,
continua trabalhando em sinal;
fez curso técnico de farmácia,
toca violino e vende de cereja a
carregador de celular.
Trabalha no cruzamento das
ruas Estados Unidos e Gabriel
Monteiro da Silva. Faz isso desde os oito. Não quer posar para
foto. "Ninguém na minha turma do curso [técnico], nem no
inglês, sabe que eu trabalho na
rua. Não tenho vergonha, porque foi graças ao meu trabalho
que eu pude estudar. Mas as
pessoas acham que quem faz isso é maloqueiro."
Nas palavras do carroceiro
Felipe, 16, que está em cima de
uma pilha de sacos com lixo reciclável, "as pessoas têm nojo
da gente".
Felipe acompanha o irmão
Felipe Souza, 18 ("minha mãe
adora esse nome"), em trajetos
de até 20 km. "É nós [sic] xingando [os motoristas], e eles
xingando nós." Os dois ganham
cerca de R$ 1.500 por mês, rodando pelo caminho mais curto. Não há contramão. "A gente
não tem motor, é na perna."
Entre os enjeitados no trânsito, nem tudo é coesão. Carroceiros são xingados por manobristas. "Isso aí é uma praga",
diz João Ribeiro, 40. Ele manobrava faz até pouco tempo em
um restaurante na Vila Olímpia. Conta, com alívio, que foi
transferido para os Jardins.
"O cliente desses lugares não
espera um minuto. Teve um
que apontou uma arma para
me obrigar a pegar o carro dele
na frente. Lá era uma fila enorme, a rua estreita, não dava para trabalhar bem."
Seja lá o que "trabalhar bem"
queira dizer num caso desses.
Texto Anterior: Há 50 Anos Próximo Texto: Foco: Passeio romântico de helicóptero com direito a hotel de luxo atrai casais Índice
|