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NOVOS ANDARILHOS
Empregada doméstica caminha quase 6 horas para ir e voltar do trabalho por causa do preço do ônibus
Virgínia anda 22 km por dia para economizar
DA REPORTAGEM LOCAL
Quem vê Virgínia Maria de Jesus Santos, 40, saindo do serviço
não imagina que ela se prepara
para uma longa caminhada. De
saia vermelha, sandália de salto
baixo, sacola na mão, cabelos molhados e sorriso no rosto, a empregada doméstica nascida em Jequié (BA) jura que seu traje é igual
ao que usou na ida, sem nenhuma
preparação especial para a fotografia que a Folha fará dela.
A reportagem pegou Virgínia
Santos de "surpresa" com a idéia
de acompanhar seu percurso do
trabalho para casa -ela soube
com três horas de antecedência. O
trajeto de 11 km -superior à distância do estádio do Morumbi ao
Masp, na avenida Paulista- leva
praticamente duas horas e 50 minutos a pé. Na ida, idem. De carro,
são 35 minutos de viagem.
A empregada doméstica não
tem nenhuma vocação para maratonista. Faz essa rotina diária
apenas para não pagar a tarifa de
ônibus de R$ 1,70. Ela guarda a
verba dada pela patroa para pagar
as despesas do dormitório onde
mora com dois filhos, no bairro
de Jova Rural, perto da rodovia
Fernão Dias e da divisa de São
Paulo com Guarulhos.
"Para andar um "tantinho", eu
teria que pegar duas conduções.
Quando sobra algum dinheirinho
no final do mês, eu pego um ônibus ou uma lotação. Mas você deve saber, né? É difícil sobrar", afirma ela, cujo salário de R$ 350 sustenta a família e que, embora não
saiba ler nem escrever direito, diz
controlar seus gastos na cabeça
("R$ 170 no mercadinho, R$ 50 de
uma cesta básica que eu compro
no caminhão, R$ 70 de material
de construção, paga um aqui, paga outro ali, quando você pensar
já foi tudo embora").
Na saída do trabalho, às 17h12,
no Mandaqui, na zona norte de
SP, Virgínia Santos, 45 kg, ainda
brinca: "O bom é que eu fico magrinha, não preciso nem me preocupar com academia".
"Sustos"
A andarilha nem se assusta mais
com os cachorros que latem enquanto ela passa. Ela conta que já
passou por situações mais difíceis
nos últimos três anos, desde que
se mudou do Jardim Pery (na zona norte, quando andava "apenas" 40 minutos para chegar ao
trabalho) para a Jova Rural. Motivo da mudança: "A vizinhança
não era muito boa".
Em 2001, Virgínia Santos foi
atropelada na avenida Santa Inês
-por onde ela passa às 17h50.
"Foi aqui [ela aponta]. O carro me
pegou quando eu tentei atravessar a rua. Eu subi [no capô] e caí
no chão. O rapaz estava com pressa, nem queria me socorrer", diz.
A doméstica relata ainda que foi
assaltada em 2002, na véspera de
Natal. "Eu estava voltando pra casa e parei numa venda. O rapaz
deve ter visto eu tirar meu dinheiro da carteira e me seguiu. Quando chegou lá no morro, estava
bem escuro, ele apontou uma arma para a minha cabeça", afirma
Virgínia Santos, que até hoje permanece sem seus documentos de
identificação -todos foram roubados naquela ocasião.
O terceiro susto que ela relata é
mais recente. Doente, caiu desmaiada no asfalto meses atrás.
"Eu senti uma dor forte, depois
veio aquela fraqueza. Quando me
dei conta tinha um policial falando comigo. Ele me levou de carro
ao hospital", conta a andarilha,
que não parava de tossir na última
quarta-feira, no trajeto para casa.
"Eu estou assim já faz um mês.
No hospital me disseram que é
uma pneumonia", afirma.
Calçadas
Virgínia Santos reclama da "falta de educação dos carros" (um
deles buzina às 18h31, enquanto
ela tenta atravessar a faixa de pedestres), mas parece nem dar
atenção para a precariedade das
calçadas em seu percurso. Passa
por ruas com passeios estreitos,
esburacados, bloqueados por automóveis estacionados, mas nem
liga -equilibra-se no meio-fio.
A empregada doméstica não
perde seu humor, mesmo com todos os obstáculos -solta gargalhadas durante a viagem. Às
18h39, cumprimenta conhecidos
que andam em sentido contrário.
"Depois de tanto tempo caminhando no mesmo lugar, a gente
faz até amizade", explica.
Ao avistar um ônibus, às 18h47,
perto do cemitério do Tremembé,
a andarilha conta uma história
curiosa. Diz que, quando tinha 16
anos e veio da Bahia para São
Paulo, começou a trabalhar na casa do proprietário de uma viação.
Sobre a qualidade dos coletivos
hoje, ela diz. "Eu não acho ruim,
não. Mas prefiro a lotação. Ela
deixa a gente mais perto de casa".
Diversão mesmo, para ela, é andar de metrô. "É muito bom. Eu
adoro a escada rolante", afirma.
"Carona"
O trajeto de Virgínia Santos é
variado. Ela atravessa zonas mais
nobres, onde há casas de alto padrão do Horto Florestal, e favelas.
Quando entra no Jaçanã, às
19h08, ela comenta: "Eu queria
morar por aqui". Mais adiante, na
ladeira da rua Ari da Rocha Miranda, um rapaz, ao notar que ela
estava sendo fotografada, diz: "Fiquem espertos. O morro está perigoso". Mas a andarilha, mesmo
estando próxima da região onde
já foi assaltada, tenta demonstrar
tranquilidade: "Não ligue não,
eles estão brincando".
Nessa longa ladeira, a garoa fina
faz a empregada doméstica, que
havia esquecido seu guarda-chuva, apressar os passos. Cansada,
diz: "Eu vejo esses carros passando todos os dias e penso: Ai, meu
Deus, que bom se eles me dessem
uma carona!".
Às 19h51, os cavalos no meio da
rua já fazem jus ao nome da Jova
Rural. Às 20h03, quando sobe
uma escadaria e chega na porta de
sua casa, Virgínia Santos convida
os acompanhantes para entrar.
Já dentro do cômodo, não chega
nem mesmo a se sentar: ainda
permanece durante meia hora em
pé, relatando por que faz esse sacrifício. "Eu faço tudo pra não
perder meu emprego", afirma ela,
ao se despedir.
(ALENCAR IZIDORO)
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