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SP 450
O médico e ex-professor da USP lembra seu passado no bairro da Liberdade e refaz trajetos sentimentais pela cidade de São Paulo
Entre gueixas, futebol e medicina
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
O adolescente Vicente Amato
Neto fazia questão de espalhar
seus livros de biologia e suas anotações no quintal da casa onde a
família morava, na rua Santa Luzia, número 23. A mãe, dona Aída, nunca soube por que o filho
gostava de fazer ali sua lições.
Vicente sabia muito bem. No
meio das manhãs, quando a mãe
se ocupava com o almoço, ele arrastava um banco para junto do
muro, subia na ponta dos pés e tinha a "visão do paraíso": gueixas
nuas tomando banho em tonéis
fumegantes, fazendo gracinhas
incompreensíveis, sem ligar para
o topete daquele moleque espiando sobre o muro.
A rua Santa Luzia é uma travessa da Conselheiro Furtado, que
nasce na praça João Mendes, bem
atrás do Tribunal de Justiça, e desce em direção à Liberdade. Vicente Amato Neto, que já foi secretário da Saúde do Estado (1992), superintendente do Hospital das
Clínicas (87 a 92), professor titular
da Faculdade de Medicina da
USP, continua uma autoridade
em infectologia do país. Hoje tem
seu consultório nos Jardins, não
muito distante do trecho da alameda Casa Branca, onde mora
confortavelmente.
Quando se casou com Miryan
Sabbaga, Amato se mudou para
uma casa modesta na rua Arruda
Alvin, bem próximo ao Hospital
das Clínicas. O HC, aliás, virou
sua segunda casa desde que ingressou como aluno, em 1944. Até
hoje, ele passa as manhãs no Instituto de Medicina Tropical, nos
fundos da faculdade e na mesma
rua do HC.
Para os lados da Conselheiro
Furtado, o professor Amato nunca mais tinha voltado. Nem queria voltar. "Sei que aquilo mudou
muito e não quero apagar imagens que tenho registradas."
Combinamos então que ele relataria os cenários que guardava e
o repórter descreveria os cenários
que encontrasse. No dia da entrevista, o professor ainda estava dividido. Até que se decidiu: "Toca
para a Conselheiro".
Para quem está no HC, o caminho mais interessante é descer a
Consolação, atravessar o viaduto
do Chá, passar diante da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, contornar a praça da Sé, tomar à esquerda e seguir em direção à Conselheiro Furtado.
""Aquela igreja ali, recém-pintada de amarelo, é a de São Gonçalo.
Eu fiz ali a primeira comunhão."
A igreja fica à direita do que hoje
se chama praça João Mendes, onde está instalado o grande prédio
do Fórum central.
"Aqui nesse meio passava a rua
Anita Garibaldi, que desapareceu
junto com a igreja dos Remédios.
Ali, em volta do prédio do tribunal, tinha um fosso espaçoso e iluminado. Era maravilhoso, nós podíamos jogar bola à noite."
A Conselheiro Furtado, que começa logo em frente, era o cenário
que o professor não queria ver.
"Ali no número 47 ficava a alfaiataria do meu pai, e, nos fundos, tinha uma escada que dava para a
vila, onde passei minha infância."
No local, só há um grande buraco transformado em estacionamento. Seguimos a pé até o número 17 da Conde de Sarzedas,
antiga entrada da vila que tinha o
mesmo nome. Foi ali que Amato
passou boa parte da infância e da
adolescência, num período em
que os imigrantes japoneses estavam presentes em todo o bairro.
A vila é hoje um estacionamento que abriga parte da frota oficial
e dos funcionários do 2º
Tribunal de Alçada Cível. As
dezenas de casas da vila foram
derrubadas no início dos anos 90.
Uma placa, num dos cantos do estacionamento, anuncia a pedra
fundamental para a construção ali
do novo Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo. A placa é de
1994, gestão do governador Luiz
Antônio Fleury. O prédio até hoje
não foi construído.
O professor Amato, na elegância de seu terno e de seus sapatos
de couro claro, anda pelo estacionamento adentro sem que os funcionários ousem perguntar quem
é aquele senhor. Ele caminha buscando no que restou dos fundos
das casas, nos barracos, alguma
coisa que lembre sua vila.
"Nesse miolo ficava um conjunto de casas, depois outras fileiras
se espalhavam até lá ao fundo",
ele vai dizendo. "Em algum lugar,
nesse ponto -ele diz apontando
o barranco-, subia a escada que
levava da vila para a alfaiataria de
meu pai, o seu Arturo. Era um excelente alfaiate, mas só pensava
no seu Palestra Itália. Para ele, a
vida era o Palestra Itália."
Lá ao longe, à esquerda, se vê o
fundo da Igreja de Santa Luzia,
que dá frente para a rua Tabatinguera, conhecida como a igreja
dos franceses. "Ali eu fui coroinha
mercenário", ele diz brincando.
"Pagavam por missa. As de vermelho, mais solene, rendiam mais
que as outras."
O professor prossegue pela Sarzedas tentando reconhecer as
construções. Lá embaixo, em algum lugar, estava a casa onde ele
nasceu em 24 de julho de 1927.
A Conde de Sarzedas é hoje uma
espécie de Santa Ifigênia dos
evangélicos. Vem gente do Estado
inteiro comprar CDs, vídeos, bíblias, terços, gravações, no "Recanto dos Evangélicos", na "Livraria Evangélica", na "A Casa do
Pregador".
O professor não reconhece a casa onde nasceu. "Ficava por
aqui", ele aponta, entre os números 308 e 320 da rua. Não há nada
que identifique uma residência,
apenas imóveis que foram reconstruídos e misturam habitações com comércios. Descendo
mais uns 200 metros, a rua termina no que foi a entrada das várzeas do Carmo ou do
Glicério. "Tinha mais
de 40 campos, nada de
grama nem de rede. Jogava quem chegava primeiro."
Hoje, o trecho que dava
entrada para a várzea do Glicério é uma área perigosa à noite. O tráfico já fechou as lojas mais
de uma vez, mas durante o dia
ninguém perturba o comércio
evangélico.
Depois dos baixios da Sarzedas,
a família se mudou para a vila na
esquina da Conselheiro, depois para o número 23
da rua Santa Luzia, uma
travessa abaixo.
Logo abaixo da vila, na
Sarzedas, ainda está o castelinho, uma construção tão
extravagante quanto misteriosa, hoje em reforma. "Para nós,
meninos, todo castelo era assombrado. Nunca tive coragem de entrar lá."
O professor nem sabe que o castelo tem versões que misturam
antigos descendentes que tiveram
poder na cidade e até amantes que
se envolveram com a marquesa
de Santos. A história termina
com um familiar apaixonado,
o advogado Luiz Rodrigues
de Ferreira, que construiu um
castelo para sua amada francesa de 18 anos.
Diz-se que o castelinho da
Sarzedas foi concluído entre 1880
e 1890 e que a noiva, Marie Luise
Delanger, chorou de decepção ao
descobrir que o castelo só tinha
luzes de vela e não dispunha de
banheiros nos cômodos superiores.
Para o menino Vicente Amato,
o castelo era apenas um local assustador, que abrigava sociedades
marianas e qualquer outra que
pudesse pagar o aluguel.
O bairro, nesses anos 30 e 40, vivia sua fase mais oriental. A partir
da primeira década do século 20,
os japoneses que chegavam a São
Paulo, em situação de completa
penúria, procuravam os locais baratos e próximos ao centro. A ladeira íngreme da rua Conde de
Sarzedas, que terminava numa
área de alagados, oferecia porões
e garagens a preços muito baixos.
Imigrantes japoneses se instalaram ali, iniciando um comércio
voltado à própria comunidade. A
primeira fábrica de tofu (queijo
de soja), doces japoneses, as primeiras pensões, escolas e pontos
de encontro da comunidade foram nascendo nessa região. A
Conde de Sarzedas virou a "rua
dos japoneses".
O menino Vicente fazia parte do
Mikado Futebol Club, um time
em homenagem ao império do Japão. "As reuniões eram na casa do
sapateiro Luizinho, que não acendia as luzes para economizar. Eu
fazia as atas no escuro."
Quando começou a Segunda
Guerra, e especialmente depois
do ataque japonês no Pacífico, em
1942, o Brasil rompeu relações
com o governo japonês e os moradores daquela região passaram
a viver clandestinamente.
"Mudamos o nome do time para Sarzedas FC, mas os colegas japoneses tiveram de fugir."
Estima-se que na época 600 japoneses moravam na Conde de
Sarzedas, e centenas de outros nas
vizinhanças. Com o final da guerra, a comunidade foi se restabelecendo e aos poucos se juntando
no que é hoje a Liberdade.
Da Santa Luzia, travessa da
Conselheiro Furtado, havia
duas opções para chegar à
Faculdade de Medicina, na
Dr. Arnaldo. Uma era pegar o elétrico Avenida
ou o ônibus Avenida, na
praça João Mendes. Subiam pela Brigadeiro
Luiz Antônio e seguiam
pela Paulista.
O professor saltava na
esquina da Consolação e
caminhava a pé até a faculdade, na Dr. Arnaldo. A outra opção era caminhar até a praça Ramos, onde fica o Teatro Municipal, subindo a Conselheiro Furtado, seguindo pela Riachuelo, a
praça do Patriarca, o viaduto do
Chá, até o ponto de onde saía o
bonde Dr. Arnaldo. "Aí era só
descer em frente ao cemitério e
atravessar a rua."
"Pouco mudou nesse caminho.
A igreja da Sé -que eu vi em
construção-, as ruas do centro, o
viaduto do Chá, o prédio da Light,
o Municipal..., tudo está igual,
apenas mais abandonado."
Na sua sala modesta, no Departamento de Parasitologia, primeiro andar do prédio de mau gosto
do Instituto de Medicina Tropical, o professor Amato Neto costuma primeiro apresentar seus
"amigos". E não são os colegas de
laboratório debruçados sobre microscópios. Numa sala ao lado, ele
abre uma estufa onde estão cerca
de 800 Tripanosomas cruzis, o bicho barbeiro, alguns para nascer,
muitos já adultos.
É com esses animais, não infectados, que a equipe do professor
pode saber se tal paciente está ou
não com com a doença.
Antes mesmo de iniciar a faculdade, o professor Amato já era
um apaixonado pelas doenças infecto-contagiosas. Toxoplasmose,
doença de Chagas, esquistossomose, parasitas intestinais. "São
doenças de pobres, que não interessam aos laboratórios."
Com a epidemia de Aids, o professor se tornou um personagem
de presença constante na mídia.
Quando foi superintendente do
Hospital das Clínicas, de 1987 a
1992, o professor "enfrentou" os
camelôs que atulhavam as calçadas do HC, construindo 36 quiosques coloridos.
"Logo uns venderam para os
outros e a rua foi invadida por estranhos."
Também estranhou a política, e
ficou menos de um ano à frente
da Secretaria de Estado da Saúde.
Não foi um período que lhe traz
saudades. Como ele diz, sua lógica
e fantasia de pesquisador e professor não combinavam com o
perfil de um político.
Quem acompanha o professor
nas suas caminhadas pela Faculdade de Medicina e pelo Hospital
das Clínicas, vê nele um outro
personagem.
Professores e alunos, para cumprimentá-lo, fazem questão de
apertar sua mão e sempre fazem
referência a algum trabalho que
publicou a alguma aula que deu.
As homenagens acontecem tanto nos salões nobres da Faculdade
de Medicina, no Instituto Central,
onde se encastelam os professores
titulares, quanto nos espaços reservados aos estudantes, o Centro
Acadêmico recentemente reformado depois de um incêndio. Jovens estudantes e professores barbados o abraçam com carinho.
Mas as homenagens mais efusivas aparecem na Atlética, a área
de esportes dos estudantes da Faculdade de Medicina que o professor frequenta desde 1944,
quando entrou para a escola.
Começou ali, ainda estudante,
jogando no "Peito Nu", time que
tinha esse nome por jogar sem camisa. "Não tenho mais forças para correr atrás da bola, mas sou eu
que organizo as partidas."
Embora não seja escalado para
os dois tempos, ele ainda dá seus
chutes, sempre como meia-direita, a mesma posição que ocupava
no Mikado Futebol Clube da Sarzedas.
Visite o site dos 450 anos de São Paulo na
www.folha.com.br/especial/2003/saopaulo450
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