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DANUZA LEÃO
Refazendo a vida
Aí, você se programa: neste fim de semana, não vai
combinar nada, para passar a
limpo a agenda de telefones. Há
uns cinco anos não faz isso, e na
gaveta está também a do seu último trabalho -aliás, imensa.
Chega o sábado, uma passada
de olhos rápida nos jornais, e vamos ao trabalho, que, tudo indica, vai ser uma delícia. Não existe
nada melhor do que uma agenda
com todas as páginas em branco,
novinha em folha. É como começar a vida de novo; e, igualzinho a
começar a vida de novo, uma delícia e um tormento.
A quase cada nome, é preciso
fazer uma opção. Mais: é preciso
rever as relações com cada pessoa,
uma por uma, e pensar se vale a
pena colocar aquele nome na
agenda nova. Um problema;
aliás, vários problemas.
Aí, começa uma leve depressão.
Aquela pessoa com quem você
passava mais tempo do que com
os amigos da vida inteira -oito
ou dez horas por dia-, com
quem abriu o coração tantas vezes, com quem acontecia de sair
do trabalho para tomar um uísque e falar mal do patrão e da
empresa. A ela você contou intimidades, com ela você desabafou,
riu e chorou, compartilhou alegrias e tristezas. Gostava dela de
verdade, mas -você na época
não sabia- entre vocês só havia
uma coisa em comum: o trabalho.
Se se cruzarem hoje em algum lugar, vai ser um prazer, mas sinceramente: você vai ligar para ela
algum dia mais na vida?
Responder a essa pergunta é um
exercício de autoconhecimento.
Será que você não tem sentimentos, não tem nenhum caráter e, de
tudo que passaram juntos -e
que não foi pouco-, não sobrou
nada? Sobrou uma amizade, sim,
só que ela agora faz parte do passado e, nessa nova etapa de vida,
as lembranças -as poucas que
ainda existem- vão ficar no coração. Na agenda, não. Aliás, já
reparou que ela nunca mais te telefonou?
Mas tem pior: aquele homem
por quem você um dia inventou
que estava apaixonada. Vivia tirando o celular da bolsa para ver
se não tinha recado, chegava em
casa esbaforida para ver se, talvez, quem sabe, na secretária eletrônica, e alugou bem o ouvido
daquela amiga perguntando o
que ela achava.
Tudo acabou, claro, e, quando,
um dia, num aeroporto, você viu
a figura de longe, enfiou a cara no
jornal para não ter que falar. Já
pensou ter de tomar um café com
ele? E se fossem pegar o mesmo
avião? E o assunto durante a viagem? Não, esse também não vai
para a agenda nova.
A cada nome passa um pequeno filme na cabeça e, na letra L,
você já relembrou metade de sua
vida. Algumas coisas com prazer
-e até essas doem, por já terem
passado- e outras que preferia
ter esquecido. Aquela empregada
que trabalhou para você durante
anos e que viu todas as coisas
-as boas e as péssimas- e para
quem você nunca mais telefonou.
E o remorso? Tem pior que o remorso?
Vai telefonar para ela, de quem
continua gostando, mas preparada para sofrer.
A memória protege e nos faz
lembrar a pessoa exatamente como da última vez em que a vimos.
Não passa pela cabeça de ninguém que 20 anos se passaram e
que a vida deixa suas marcas no
rosto e na alma. Quando você vê
as marcas no rosto dela, sofre;
pensa que está sofrendo por ela,
mas na verdade está sofrendo por
você mesma. Afinal, os mesmos
20 anos passaram para você também.
A vida é cruel, e a única defesa
às vezes é endurecer e sem nenhuma ternura.
Refazer uma agenda é uma
queima de arquivo, e ninguém
passa por isso impunemente.
Porque dói.
E-mail -
danuza.leao@uol.com.br
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