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GILBERTO DIMENSTEIN
Quem tem de repetir é a escola
Encerrada a peça "Variações
Enigmáticas", lançada na
quinta-feira passada, em São
Paulo, Paulo Autran, ainda no
palco, foi protagonista de uma cena simples. Tão simples que, por
alguns instantes, fez sumir a imagem mítica do ator, diluída diante de um bolo cheio de velas.
Difícil não ser tocado pela riqueza do texto e, em especial, pela
grandiosidade do personagem
encarnado por Paulo Autran
-atormentado pelas saudades
de um grande amor, um premiado escritor isola-se numa ilha, onde ameniza a solidão com prostitutas, bebida, literatura e música
erudita. Termina o espetáculo.
Sem entender, vejo subir ao palco
um grupo de pessoas que seguravam um bolo; todos passaram a
entoar o familiar "Parabéns a
Você".
Aquela cena, distante das conturbadas e complexas emoções do
palco, praticamente rendeu um
novo texto. Paulo Autran fazia 80
anos. Alguém chegar a essa idade
trabalhando como ele, com tamanho vigor e encanto, é a síntese do
ideal da educação.
Para ele, "teatro é a arte eternamente em crise". Isso significa que
o ator está eternamente em crise,
aberto ao aprendizado das novas
possibilidades. Viver, em suma, é
aprender; envelhecer é perder a
curiosidade.
Educar é ensinar o encanto da
possibilidade -o resto é mero detalhe. Daí a esterilidade de certos
debates travados durante a época
das eleições, quase todos equivocados sobre o que deveria fazer
uma escola.
Uma das bandeiras de Paulo
Maluf é o fim da chamada "progressão continuada". O ataque
-que, na semana passada, foi
em essência, apoiado por Lula-
deu voz ao incômodo de uma
parcela expressiva dos professores. "Progressão continuada" é
uma política desenvolvida em várias cidades, como São Paulo,
contra a repetência: a idéia é fornecer ao estudante recuperação e
acompanhamento permanentes
para que não repita o ano. De
acordo com esse sistema, deixa de
existir o aluno que, por não ir
bem em uma só matéria, volta à
estaca zero.
Argumenta-se (e com razão)
que muitos alunos conseguem
prosperar apesar de despreparados. Mas descobrem-se casos de
estudantes analfabetos e semi-analfabetos, que acabam sendo
usados como pretexto para defender a prática anterior. O professor
sente-se indefeso (e também com
certa dose de razão) sem o instrumento da repetência.
Com poucas exceções, a escola
pública é ruim. E não há propaganda oficial capaz de esconder
essa obviedade: o professor é mal
remunerado e mal treinado, as
classes são lotadas, as bibliotecas
não têm monitores preparados, os
laboratórios são falhos. Isso apesar de muitos avanços.
Na semana passada, divulgaram-se mais pesquisas que mostram como a escola virou cenário
dos mais variados tipos de violência. Até mesmo contra o professor.
Surgem notícias, como aconteceu
na sexta-feira passada, sobre professores que vendem drogas para
estudantes.
Colocar a culpa do baixo desempenho escolar no aluno é apenas uma manifestação de ignorância pedagógica. Repetir não
ajuda a ensinar: é apenas uma
punição que estimula a evasão.
Destrói o auto-respeito, as vítimas se sentem culpadas de sua
"burrice". É um massacre psicológico. É como se apontassem para
as vítimas de um delito e dissessem: "Vocês são culpados".
Outra modalidade de ignorância pedagógica, algo que afeta
não só as escolas públicas mas
muitas das privadas, é imaginar
que a escola deve apenas sistematizar e transmitir conteúdos. Talvez esse modelo de escola sirva
para treinar o aluno para fazer
provas, para passar no vestibular,
mas é inútil numa sociedade que
exige aprendizagem permanente.
Por isso faz sentido a proposta de
Ciro Gomes, ou seja, um vestibular de três anos, com provas semelhantes às do Enem, que exigem
associação de idéias e de informação.
Todos os candidatos -Serra,
Lula, Ciro e Garotinho- defendem, em maior ou menor grau,
algum tipo de cota nas universidades -o que, aliás, pega bem
num ano eleitoral. As cotas são
defensáveis, mas, com esse nível
de ensino público, o que se vai fazer é jogar na universidade centenas de milhares de jovens despreparados. Se não receberem um reforço para recuperar o que deixaram de aprender ao longo da vida, estará desmoralizado o projeto de democratizar o ensino superior.
A cultura da repetência manda
a mensagem de que prazer e
aprendizado nunca combinam.
Não leva em conta que as pessoas
têm um tipo de habilidade a ser
desenvolvido -e que o papel da
escola é ser um espaço de descoberta de talentos e de estímulo à
curiosidade. Cabe a ela apostar
que qualquer um pode, como
Paulo Autran, envelhecer aprendendo.
Não é o aluno que tem de se
adaptar à escola ruim, é a escola
ruim que tem de melhorar para
atender ao aluno.
P.S. - Pena que tenha surgido
em ano eleitoral e em final de governo, mas está correta a iniciativa, lançada na semana passada
pelo Ministério da Educação, de
patrocinar cursinhos pré-vestibulares comunitários e de distribuir
ajuda de custo aos seus alunos.
E-mail - gdimen@uol.com.br
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