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SP 450
Trajetória do líder do grupo Oficina sempre se desenrolou tendo como pano de fundo o bairro dos teatros
O Bixiga como palco da vida
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Não peça a José Celso Martinez
Corrêa para morar na nostalgia.
Ele até se permite pisar o terreno
da saudade, mas permanecer ali
por muito tempo seria ""reacionário" demais para esse artista militante do teatro que contracena
com a cidade de São Paulo desde
que veio à luz, há 66 anos.
Ele nasceu em Araraquara, em
30 de março de 1937, mas consta
que o bebê de um ano já vencia os
cerca de 282 quilômetros de viagem, em vagão de trem, até a estação da Luz, nos braços da mãe ou
do pai, para as festas de fim-de-ano na casa do avô.
O marceneiro espanhol Celso
Martinez Carrera morava na antiga travessa Brigadeiro Luís Antônio, atual rua Adoniran Barbosa,
de fato uma travessa da rua Brigadeiro, no Bixiga.
Historicamente, o bairro foi habitado por maioria de imigrantes
italianos. Negros, nordestinos e
descendentes de portugueses
também compõem o DNA do Bixiga, o pedaço da cidade com a
maior concentração de teatros.
""Chegar à rua Jaceguai era como se estivéssemos numa zona
proibida, perigosa. Era ali que ficavam os quilombos, os cabeças-de-porco. Eu já ia a esse lugar-limite", afirma Zé Celso.
O final da rua Adoniran Barbosa, onde morava o avô paterno,
foi desapropriado para a construção do Elevado Costa e Silva, o
Minhocão, inaugurado em 1971.
Não fosse a obra, a extensão da
Adoniran Barbosa daria justamente no teatro Oficina.
""Faz 66 anos que eu existo naquele espaço", afirma o ator, diretor e dramaturgo, para ilustrar o
seu vínculo com o
Oficina, também o
nome do grupo. O
espaço funciona há
42 anos no mesmo
endereço, o número
520 da rua Jaceguai.
No início dos anos
50, Zé Celso passeava com o avô na avenida Paulista e,
quando iam até o
Brás, rumo à zona
leste, para comprar
madeira, era como
alcançar o arrabalde.
O tom provinciano
podia ser medido
pelo carro do vendedor de leite de cabra
que passava pelas
ruas do Bixiga. ""O
mesmo carrinho
passava, antes, pela
rua onde morava o Oswald de Andrade", afirma.
O escritor modernista (1890-1954) foi um dos pensadores que
mais influenciaram a formação de
Zé Celso, sobretudo pelo movimento antropofágico na literatura
e nas artes dos anos 1920.
Andrade escreveu ""O Rei da Vela", peça considerada ""irrepresentável", montada pelo Oficina
em 1967 (leia texto abaixo).
O pai de Zé Celso, José Borges
Corrêa, o levava à avenida Paulista e para assistir aos filmes em cartaz no Cine Rex, esquina das ruas
Rui Barbosa e Conselheiro Carrão, hoje uma igreja evangélica.
Noutro cinema, o Art Palácio,
na avenida São João, as sessões
eram suspensas durante o Carnaval para dar lugar aos bailes com
serpentinas e confetes. O Teatro
Brasileiro de Comédia, na Major
Diogo, ícone da profissionalização dos atores, estava com as portas abertas desde 1948, mas Zé
Celso só entrou ali anos depois.
Ele começou a assistir a peças
ou participar de encontros da
classe no teatro de Arena (rua
Teodoro Baima), que fazia a defesa uma dramaturgia nacional. Seu
pai gostava mais de espetáculos
populares, ao contrário da platéia
pequeno-burguesa do TBC do
empresário Franco Zampari. Eles
iam ao teatro Santana, na rua 24
de Maio, que colocava em cartaz
espetáculos de teatro de revista.
Zé Celso tinha 19 anos quando
começou o curso de direito nas
arcadas do largo São Francisco.
Fez a faculdade de
1956 a 1960, mas
nunca foi buscar o
canudo.
Em seus primeiros
anos na cidade, morou na pensão do
Abelardo, na rua
Condessa São Joaquim, sempre no Bixiga. Vagava com sua
turma em torno das
praças da Sé, República, viaduto do
Chá. Gostava ainda
de pegar o bonde andando, literalmente.
"Era um pouco perigoso, mas divertido e
barato."
Deixava-se contaminar pela atmosfera
cultural da época.
Assistia a shows de
cantoras como Maysa e Isaurinha
Garcia na boate Baiúca ou no João
Sebastião Bar. O rito de passagem
se deu em 1958, quando criou, ao
lado de colegas do curso de direito
como Amir Haddad, Renato Borghi e Carlos Queiroz Telles, um
grupo de teatro amador, alugando o teatro Novos Comediantes,
na rua Jaceguai.
""O grupo nasceu de uma espécie de departamento cultural da
faculdade. Reunia comunistas,
católicos, pessoas de direita, de esquerda. O teatro acabou polarizando mais do que o movimento
político", diz Zé Celso.
Em 1958, escreveu ""Geni no Pomar", sua primeira peça, encenada como ""teatro em domicílio"
num casarão de Higienópolis que
abrigava carteado. ""Era um lugar
chiquérrimo, aonde levantávamos dinheiro para manter nossa
atividade de amadores."
Foi também naquele ano que
escreveu ""Vento Forte para um
Papagaio Subir", apresentada no
Novos Comediantes.
No início dos anos 60, aconteceu um show de bossa nova no
auditório do Mackenzie, na rua
Maria Antonia. Um dos objetivos
era arrecadar dinheiro para o aluguel do teatro. Entre os organizadores, estava o compositor Geraldo Vandré. No palco, intérpretes
como Nara Leão.
""Foi um escândalo, ninguém
acreditava naquela mulher cantando tão baixinho, tão doce.
Lembro-me da platéia pirada
com aquela desconstrução absoluta do espetáculo", diz Zé Celso.
Logo depois, o grupo de estudantes assumiu de vez o Novo Comediantes, que saiu de cena com
suas cadeiras cor-de-rosa, palco
diminuto e rotunda (pano de fundo em semicírculo) para dar lugar
ao teatro Oficina, inaugurado em
16 de agosto de 1961.
O espetáculo de inauguração foi
""A Vida Impressa em Dólar", do
americano Clifford Odets, sob direção de Zé Celso. Começava ali a
aventura do Oficina, conjunto
teatral que atraiu um coro de artistas como Flávio Império, Lina
Bo Bardi, Edson Elito, Fauzi Arap,
Etty Fraser, Eugênio Kusnet, Célia
Helena, Raul Cortez, Ron Daniels,
Ítala Nandi, Dirce Migliaccio, Fernando Peixoto e Nelson Xavier.
Um incêndio em 1966; as humilhações causadas pelo Comando
de Caça aos Comunistas em 1968;
a prisão e o exílio de Zé Celso em
Portugal, entre 1974-79; o tombamento como patrimônio histórico em 1982; a difícil relação com o
Grupo Silvio Santos, do terreno
vizinho; enfim, não faltam exemplos de que o espírito insurreto é
sina de quem faz arte naquele
chão. Daí a urgência do agora, no
qual a empresa de adaptar e representar ""Os Sertões", de Euclydes da Cunha, é apenas mais um
capítulo, protagonizado inclusive
por crianças e jovens de projetos
sociais do bairro.
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