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SP 450
Malconservados, conjuntos de casas, ao lado de fábricas, são lembranças de uma cidade que começava a crescer
Vilas de SP revelam história de trabalhadores
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
São 11h de um dia ensolarado.
O menino Raul Volpe Motta, oito anos, acaba de voltar de uma
manhã típica em sua vida. Mergulhou no rio, passeou de barco,
roubou goiabas da chacrinha de
um vizinho, um bravo juiz de menores, na margem oposta. Agora,
volta para casa segurando uma
vareta em que jazem, amarrados
pela boca, lambaris e tilápias.
Caminha pelas ruas de pedras
que bem conhece. São cinco vias,
cortadas por quatro travessas, numa comunidade de 178 casas. Ele
mora no número 23 da rua 2 (todas têm nomes, mas os habitantes
continuam chamando pelos números). Seu pai trabalha na fábrica ao lado e se mudou para a vila
com a mulher e os três filhos.
Raul estuda na Escola dos Meninos, é examinado periodicamente
pelo ambulatório local, faz compras com caderneta no armazém,
janta com os pais no restaurante
no segundo andar do prédio principal nos sábados e, aos domingos, frequenta a capela São José
do Belém. Tudo sem sair da vila.
Estamos em 1933. A cidade é
São Paulo, o rio é o Tietê, a vila é a
Maria Zélia, de operários, e o bairro é o Belenzinho, na zona leste, a
pouco mais de 15 minutos da praça da Sé. "Era uma delícia."
Quem conta a história é o próprio Raul, hoje com 79 anos, há 71
morando na mesma casa, há 40
com a mulher, Maria Gilda, 69. O
cenário, porém, mudou muito.
Para pior.
Hoje, a cidade cresceu. Entre a
vila e o rio há as marginais, congestionadas e barulhentas. O próprio rio faz tempo deixou de sê-lo.
O terreno do fundo, que separa as
casas da rua externa, está sendo
disputado entre a associação dos
moradores, que ali ergueu um
centro de lazer e uma sede, e a
Prefeitura de São Paulo, que reclama o pedaço de volta.
Mas o principal é a situação geral da vila. A maioria das casas foi
desfigurada; muitas ganharam
um segundo andar inexistente na
planta original. A Escola dos Meninos e a das Meninas têm pouco
tempo antes de desabar de vez.
A Vila Maria Zélia, construída
no início do século passado pelo
industrial Jorge Street (1863-1939)
ao lado de sua fábrica de tecidos, é
um símbolo do descaso com que a
cidade, às vésperas de seus 450
anos, vem tratando suas históricas vilas operárias, principalmente as que já foram tombadas.
É o caso da Vila Economizadora, na Luz (centro), que assiste calada à sua deterioração. Da mesma maneira estão também outras, como a Vila Itororó, construída no começo do século passado na Liberdade, que trazia a
primeira casa de São Paulo a ter
piscina -hoje um cortiço. A exceção é a Vila dos Ingleses, na Luz,
que subsiste inalterada pela mão
forte de seu proprietário e pelo fato de ter virado centro comercial.
São Paulo teve em seu auge pelo
menos 40 vilas operárias, segundo Telma de Barros Correia, professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da USP-São Carlos e autora de pesquisa
sobre esse tipo de construção.
"Algumas continuam existindo,
outras tiveram as casas modificadas, muitas foram destruídas."
O motivo, segundo o Departamento do Patrimônio Histórico
(DPH), órgão municipal que responde pelos bens tombados em
São Paulo, é o de sempre: falta de
gente e recursos. "O órgão que
tomba não é obrigado a restaurar", diz a arquiteta Antônia Luz,
do Departamento de Crítica e
Tombamento da entidade.
A responsabilidade, diz, é dos
proprietários, que devem aproveitar as isenções fiscais e procurar parcerias com a iniciativa privada para conservar os imóveis.
Há anos a Sociedade Amigos da
Maria Zélia tenta convencer o Instituto Nacional do Seguro Social
(INSS), hoje dono dos seus prédios históricos, a restaurar as edificações ou doá-las para quem
aceitar a empreitada. O órgão diz
que espera avaliação de viabilidade de técnicos para então decidir
o que fazer -provavelmente repassar tudo à prefeitura.
Formação da cidade
As vilas operárias surgiram no
fim do século 19, começo do 20,
nas grandes cidades do mundo
novo que começavam seu processo tardio de industrialização, como Buenos Aires e Cidade do México. Em São Paulo, surgiam geralmente ao lado de uma fábrica e
abrigava imigrantes, principalmente italianos.
"Na formação da cidade, elas
são fragmentos que narram a
odisséia dos personagens menos
privilegiados na industrialização
e, ao mesmo tempo, os mais importantes", diz Hugo Segawa, autor de "Prelúdio da Metrópole".
Para ele, tal moradia é capítulo especial da urbanização paulistana.
"Só que seu contorno nem sempre é nítido", diz. Assim, há bairros operários que se formaram
não necessariamente como resultado da ação de industriais; há
aglomerados e cortiços que surgiram com a pobreza e que quase
não deixaram vestígios; e há as vilas operárias. Uma delas, Maria
Zélia, continua sua briga pela sobrevivência. Se depender de Raul
Volpe Motta, a briga vai ser boa.
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