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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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VIDA NOVA

Valdezita Caldeira Santos perdeu nove integrantes da família quando sua casa foi destruída em um deslizamento

Sem os seis filhos, mãe vive luto permanente

MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE

No Dia das Mães do ano passado, o lavador de carros Antônio José Laurêncio saiu cedo de casa, no alto do Morro das Pedras (zona oeste de Belo Horizonte), com os seis filhos. Antes de bater a porta, eles repetiram à mulher de Laurêncio, mãe das crianças e dos adolescentes, Valdezita Caldeira Santos: voltariam logo da padaria com o pão para o café.
Menos de uma hora depois, subiram a escadaria íngreme da favela. Além do pão, carregavam um buquê de flores e um vaso, comprados pouco antes com as economias que Laurêncio acumulou na semana. ""Eram rosas", lembra Valdezita.
Já havia sido mais simples. Em certo Dia das Mães, os trocados não foram suficientes para comprar os jogos de pratos ou copos, as vasilhas ou o relógio dos outonos mais prósperos.
""Mas os meninos pegaram uma flor num quintal e me deram", conta a mãe.
Hoje ela não vai ganhar presente dos filhos. Todos morreram em janeiro, depois que a casa de alvenaria foi destruída na queda de um barranco, arrancado junto com dois pés de manga de cerca de 9 metros cada um. Havia duas semanas que a chuva começara.
Morreram também três sobrinhos, que ficaram aos cuidados do casal porque, dias antes, uma irmã de Valdezita havia sido presa ao furtar toalhas de mesa numa loja.
A mãe que não tem mais filho fez um pedido. ""O presente deles eu vou querer, todo ano", diz, chorando. ""Como se estivessem aqui. Antônio vai comprar e vai me dar."
Na última quinta-feira, Antônio José Laurêncio se angustiava sem saber como coletar o dinheiro que lhe permitiria comprar o par de tênis que chamara a atenção da mulher numa vitrine. ""Tenho que fazer alguma coisa para conseguir."

Crianças e sabonetes
O primeiro Dia das Mães da mãe ""órfã" dos filhos será repleto de crianças. Desde que foi resgatada com o marido, com a lama cobrindo-os até a cintura, Valdezita foi levada pela prefeitura para um modesto hotel da capital mineira. Está ali até hoje.
Nos últimos dias, juntou-se às mulheres de quase outras 40 famílias que perderam suas casas nos temporais de janeiro e foram abrigadas no mesmo local.
Naquele mês, o índice de precipitação pluviométrica medida pelo 5º Distrito de Meteorologia de Belo Horizonte foi de 782,2 mm, 166% a mais do que a média histórica de 293,8 mm.
Valdezita e as vizinhas passaram horas enfeitando sabonetes com gravuras coloridas.
Postos para secar no chão de cada quarto de não mais de seis metros quadrados, os sabonetes vão ser entregues às crianças, que terão com o que presentear as mães, justamente aquelas que produziram as peças com que serão presenteadas.
As crianças são dezenas. Na semana passada nasceu mais uma. Os programas impostos por elas nas TVs dos quartos de quem conseguiu alguma emprestada, como Valdezita, 38, e Laurêncio, 37, são proibidos no aposento do casal. ""Vejo tudo na TV, menos desenhos, que me fazem lembrar", diz a mãe que perdeu os filhos. ""Eles sabiam o nome de tudo. Nem eu sei. Vejo novela, outras coisas, não desenhos."
A mãe acostumou-se com crianças desde cedo. Foi um dos mais velhos dos nove filhos do casamento dos pais, ambos lavradores. Escapou da lida na roça, destino de muitos meninos e meninas do Vale do Jequitinhonha, região pobre de Minas onde cresceu. Aos 10 anos, foi trabalhar como babá.
Antes de conhecer Laurêncio, manteve um relacionamento do qual foi fruto o primeiro filho, Cirando, depois assumido pelo marido. No dia 16 de janeiro, os bombeiros ainda ouviram o primogênito vivo entre os escombros. Pediu que se dedicassem a salvar um irmão mais novo, Felipe. ""Para mim não dá mais", disse, segundo os bombeiros.

Gritos e esquecimento
""Mãe! Mãe!"
De madrugada, por volta das 3h, foi esse o único grito que Valdezita recorda ter ouvido.
""Eu estava dormindo. Acordei e disse: "Antônio, você escutou o barulho aí? Alguma coisa caiu." Quando fui levantar a gente já estava presa, não tinha mais força para levantar. Aí a Jéssica gritou."
O silêncio voltou. O casal sobreviveu porque uma viga caída atravessou sobre a cama e conteve um volume de terra. Os nove jovens, divididos nos outros dois quartos da casa coberta com telhas de amianto, foram soterrados. Se estivessem na sala, onde ninguém dormia, escapariam.
Cirando, 19, era ajudante de pintor. Samira, 13, e Jéssica, 12, sonhavam ser médicas. Felipe, 10, juntava as ""pratinhas" (moedas) que o pai recebia para comprar chuteiras novas. Samuel, 8, falava em ser pastor. A caçula, Anna Karolina, 6, estava na creche. Teria completado sete anos na última semana.
Com exceção dos mais velhos, todos frequentavam a escola ou a creche. De segunda a sexta, iam aos cultos noturnos de uma igreja evangélica. No domingo, não perdiam a missa e o catecismo.
""O mais estranho é que eu não me lembro do rosto deles, da voz, de muita coisa", diz a mãe. ""Não lembro do velório, do enterro. Deus tirou muita coisa da minha cabeça para eu não endoidar."
Ela revê os rostos dos filhos em fotografias de um álbum catado nos escombros. Foi dos poucos objetos recuperados, o resto se perdeu. Fez um quadro pequeno com uma foto de Jéssica. Fará mais cinco, com os demais.
O álbum foi garimpado depois do resgate de Felipe, no começo da noite de 16 de janeiro. Ele sobreviveu a um segundo deslizamento. Na maca, disse que sentia frio. No hospital, pediu sanduíche e guaraná. Com a circulação nas pernas prejudicada, morreu na madrugada do dia 17.

Sonhos e maternidade
Valdezita brinca com as crianças no hotel, mas a algazarra infantil a incomoda.
""Sofro direto, sonho. Se os meninos gritam, ficam correndo à noite, dão uma pezada na porta, eu já levanto. Acho que está caindo tudo de novo. Acontece a mesma coisa quando os ônibus passam perto da janela e fazem barulho. Até já caí da cama."
Ela e o marido têm uma cama de solteiro. Uma de casal ocuparia quase todo o espaço. Laurêncio desenrola um colchonete para dormir. Sua mulher passa boa parte do dia na cama, esperando os filhos voltarem. ""Às vezes acho que estão na escola, na creche. Meus meninos estudavam o dia todo. Acho que ainda vão chegar, no fim da tarde."
Laurêncio perdeu seu ponto de lavador de carros. Valdezita não voltou a trabalhar fora -desde o segundo filho, não teve mais tempo. Diz que costuma esquecer, na rua, o que a levou até lá. ""Quem vai me querer para trabalhar? Ninguém."
Afirma não querer mal ao engenheiro que, rememoram ela e o marido, na manhã anterior à tragédia disse que a casa do morro estava mais segura que a dele.
A Prefeitura de Belo Horizonte informou que o engenheiro, profissional de uma empresa terceirizada, foi afastado por uma comissão que concluiu ter havido ""falha humana".
Valdezita e Laurêncio esperam receber logo a casa prometida. Lamentam que, com os R$ 15 mil oferecidos pela prefeitura, seja difícil encontrar uma, mesmo em favela.
A primeira que alugaram ao chegar à capital, em 1989, ficava na rua Esperança, perto da casa onde viveram por oito anos, até janeiro. Valdezita pretende montar a nova igual à anterior. ""Eles [os filhos" vão ter o quartinho deles, com as fotos deles."
Valdezita, que há quase 20 anos vive com Laurêncio, desde uma paixão fulminante nascida numa festa, tomou uma decisão. Quando se mudar, vai adotar uma criança, para ser mãe novamente. ""É que eu liguei [as trompas". Então vou adotar. Quero uma menininha."
Diz que ""nem quer pensar" no Dia das Mães. Enxuga as lágrimas com a blusa e murmura: ""A gente nunca esquece, não adianta. Ser mãe é a melhor coisa da vida. É bonito ser mãe".



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