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VIDA NOVA
Valdezita Caldeira Santos perdeu nove integrantes da família quando sua casa foi destruída em um deslizamento
Sem os seis filhos, mãe vive luto permanente
MÁRIO MAGALHÃES
ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE
No Dia das Mães do ano passado, o lavador de carros Antônio
José Laurêncio saiu cedo de casa,
no alto do Morro das Pedras (zona
oeste de Belo Horizonte), com os
seis filhos. Antes de bater a porta,
eles repetiram à mulher de Laurêncio, mãe das crianças e dos
adolescentes, Valdezita Caldeira
Santos: voltariam logo da padaria
com o pão para o café.
Menos de uma hora depois, subiram a escadaria íngreme da favela. Além do pão, carregavam um
buquê de flores e um vaso, comprados pouco antes com as economias que Laurêncio acumulou na
semana. ""Eram rosas", lembra
Valdezita.
Já havia sido mais simples. Em
certo Dia das Mães, os trocados
não foram suficientes para comprar os jogos de pratos ou copos,
as vasilhas ou o relógio dos outonos mais prósperos.
""Mas os meninos pegaram uma
flor num quintal e me deram",
conta a mãe.
Hoje ela não vai ganhar presente
dos filhos. Todos morreram em
janeiro, depois que a casa de alvenaria foi destruída na queda de
um barranco, arrancado junto
com dois pés de manga de cerca de
9 metros cada um. Havia duas semanas que a chuva começara.
Morreram também três sobrinhos, que ficaram aos cuidados do
casal porque, dias antes, uma irmã
de Valdezita havia sido presa ao
furtar toalhas de mesa numa loja.
A mãe que não tem mais filho fez
um pedido. ""O presente deles eu
vou querer, todo ano", diz, chorando. ""Como se estivessem aqui.
Antônio vai comprar e vai me
dar."
Na última quinta-feira, Antônio
José Laurêncio se angustiava sem
saber como coletar o dinheiro que
lhe permitiria comprar o par de tênis que chamara a atenção da mulher numa vitrine. ""Tenho que fazer alguma coisa para conseguir."
Crianças e sabonetes
O primeiro Dia das Mães da mãe
""órfã" dos filhos será repleto de
crianças. Desde que foi resgatada
com o marido, com a lama cobrindo-os até a cintura, Valdezita foi
levada pela prefeitura para um
modesto hotel da capital mineira.
Está ali até hoje.
Nos últimos dias, juntou-se às
mulheres de quase outras 40 famílias que perderam suas casas nos
temporais de janeiro e foram abrigadas no mesmo local.
Naquele mês, o índice de precipitação pluviométrica medida pelo 5º Distrito de Meteorologia de
Belo Horizonte foi de 782,2 mm,
166% a mais do que a média histórica de 293,8 mm.
Valdezita e as vizinhas passaram
horas enfeitando sabonetes com
gravuras coloridas.
Postos para secar no chão de cada quarto de não mais de seis metros quadrados, os sabonetes vão
ser entregues às crianças, que terão com o que presentear as mães,
justamente aquelas que produziram as peças com que serão presenteadas.
As crianças são dezenas. Na semana passada nasceu mais uma.
Os programas impostos por elas
nas TVs dos quartos de quem conseguiu alguma emprestada, como
Valdezita, 38, e Laurêncio, 37, são
proibidos no aposento do casal.
""Vejo tudo na TV, menos desenhos, que me fazem lembrar", diz
a mãe que perdeu os filhos. ""Eles
sabiam o nome de tudo. Nem eu
sei. Vejo novela, outras coisas, não
desenhos."
A mãe acostumou-se com crianças desde cedo. Foi um dos mais
velhos dos nove filhos do casamento dos pais, ambos lavradores.
Escapou da lida na roça, destino
de muitos meninos e meninas do
Vale do Jequitinhonha, região pobre de Minas onde cresceu. Aos 10
anos, foi trabalhar como babá.
Antes de conhecer Laurêncio,
manteve um relacionamento do
qual foi fruto o primeiro filho, Cirando, depois assumido pelo marido. No dia 16 de janeiro, os bombeiros ainda ouviram o primogênito vivo entre os escombros. Pediu que se dedicassem a salvar um
irmão mais novo, Felipe. ""Para
mim não dá mais", disse, segundo
os bombeiros.
Gritos e esquecimento
""Mãe! Mãe!"
De madrugada, por volta das 3h,
foi esse o único grito que Valdezita
recorda ter ouvido.
""Eu estava dormindo. Acordei e
disse: "Antônio, você escutou o barulho aí? Alguma coisa caiu."
Quando fui levantar a gente já estava presa, não tinha mais força
para levantar. Aí a Jéssica gritou."
O silêncio voltou. O casal sobreviveu porque uma viga caída atravessou sobre a cama e conteve um
volume de terra. Os nove jovens,
divididos nos outros dois quartos
da casa coberta com telhas de
amianto, foram soterrados. Se estivessem na sala, onde ninguém
dormia, escapariam.
Cirando, 19, era ajudante de pintor. Samira, 13, e Jéssica, 12, sonhavam ser médicas. Felipe, 10, juntava as ""pratinhas" (moedas) que o
pai recebia para comprar chuteiras novas. Samuel, 8, falava em ser
pastor. A caçula, Anna Karolina, 6,
estava na creche. Teria completado sete anos na última semana.
Com exceção dos mais velhos,
todos frequentavam a escola ou a
creche. De segunda a sexta, iam
aos cultos noturnos de uma igreja
evangélica. No domingo, não perdiam a missa e o catecismo.
""O mais estranho é que eu não
me lembro do rosto deles, da voz,
de muita coisa", diz a mãe. ""Não
lembro do velório, do enterro.
Deus tirou muita coisa da minha
cabeça para eu não endoidar."
Ela revê os rostos dos filhos em
fotografias de um álbum catado
nos escombros. Foi dos poucos
objetos recuperados, o resto se
perdeu. Fez um quadro pequeno
com uma foto de Jéssica. Fará
mais cinco, com os demais.
O álbum foi garimpado depois
do resgate de Felipe, no começo da
noite de 16 de janeiro. Ele sobreviveu a um segundo deslizamento.
Na maca, disse que sentia frio. No
hospital, pediu sanduíche e guaraná. Com a circulação nas pernas
prejudicada, morreu na madrugada do dia 17.
Sonhos e maternidade
Valdezita brinca com as crianças
no hotel, mas a algazarra infantil a
incomoda.
""Sofro direto, sonho. Se os meninos gritam, ficam correndo à
noite, dão uma pezada na porta,
eu já levanto. Acho que está caindo tudo de novo. Acontece a mesma coisa quando os ônibus passam perto da janela e fazem barulho. Até já caí da cama."
Ela e o marido têm uma cama de
solteiro. Uma de casal ocuparia
quase todo o espaço. Laurêncio
desenrola um colchonete para
dormir. Sua mulher passa boa
parte do dia na cama, esperando
os filhos voltarem. ""Às vezes acho
que estão na escola, na creche.
Meus meninos estudavam o dia
todo. Acho que ainda vão chegar,
no fim da tarde."
Laurêncio perdeu seu ponto de
lavador de carros. Valdezita não
voltou a trabalhar fora -desde o
segundo filho, não teve mais tempo. Diz que costuma esquecer, na
rua, o que a levou até lá. ""Quem
vai me querer para trabalhar? Ninguém."
Afirma não querer mal ao engenheiro que, rememoram ela e o
marido, na manhã anterior à tragédia disse que a casa do morro estava mais segura que a dele.
A Prefeitura de Belo Horizonte
informou que o engenheiro, profissional de uma empresa terceirizada, foi afastado por uma comissão que concluiu ter havido ""falha
humana".
Valdezita e Laurêncio esperam
receber logo a casa prometida. Lamentam que, com os R$ 15 mil
oferecidos pela prefeitura, seja difícil encontrar uma, mesmo em favela.
A primeira que alugaram ao
chegar à capital, em 1989, ficava na
rua Esperança, perto da casa onde
viveram por oito anos, até janeiro.
Valdezita pretende montar a nova
igual à anterior. ""Eles [os filhos"
vão ter o quartinho deles, com as
fotos deles."
Valdezita, que há quase 20 anos
vive com Laurêncio, desde uma
paixão fulminante nascida numa
festa, tomou uma decisão. Quando se mudar, vai adotar uma
criança, para ser mãe novamente.
""É que eu liguei [as trompas". Então vou adotar. Quero uma menininha."
Diz que ""nem quer pensar" no
Dia das Mães. Enxuga as lágrimas
com a blusa e murmura: ""A gente
nunca esquece, não adianta. Ser
mãe é a melhor coisa da vida. É bonito ser mãe".
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