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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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MATERNIDADE

Reportagem acompanhou vida de auxiliar de enfermagem, em casa e nos plantões, para mostrar essa "jornada dupla"

Profissional de berçário é mãe em tempo integral

DA REVISTA

Sobrou para Fabiana. Mãe e profissional de berçário, ela topou levar a reportagem aos bastidores da maternidade. Na última semana de abril, a Revista acompanhou duas de suas noites no hospital e também um pouco do batente caseiro para mostrar um outro tipo de "jornada dupla", o da mãe que até no trabalho segue firme no papel de mãe.
Para cuidar da prole alheia, a auxiliar de enfermagem deixa a própria na casa da mãe. Dona Marisa "passou a vida avisando que não ia ficar com neto", mas paga a língua e mora perto, na mesma Vila Ema de onde Fabiana Salgaço sai, às 17h20, para o trabalho. Vai na garupa da moto do marido, outro auxiliar de enfermagem. Ele pega às 18h, num pronto-socorro infantil do Cambuci. Ela, às 19h, no Hospital Santa Catarina. Rogério, 25, dois empregos, vira a noite todo dia. Fabiana, 26, noite sim, noite não. Noite sim, segue de carona até o serviço dele. Dali qualquer ônibus serve, em 20 minutos está na Paulista. Adiantada como sempre, mas assim economiza e não arrisca os seis anos de emprego. Três filhos, tem medo de ser demitida.
Às 18h30, carregando a sacola onde se lê "enfermagem", ela anda devagar até a entrada dos fundos do hospital. Ironia é o fato de precisar fazer hora até bater o ponto. Numa dessas, foi ao shopping e mandou gravar, no coraçãozinho de ouro preso ao pescoço, a foto de Pedro Henrique (2), Maria Eduarda e João Vitor (8 meses). "Meus três amores."
O coração de mãe é retirado antes da entrada no berçário. Fica, como tudo que veio da rua, no vestiário. Fabiana põe o uniforme. Por cima, o avental de estampa infantil. Pantufas esterilizadas, está pronta para os bebês. Ela e mais 14 berçaristas passam o tempo atendendo chamados dos quartos. Mãe tem muita dúvida.
Nessa noite, ela está escalada para o Banco de Leite, serviço com pouco filé mignon (os recém-nascidos) e muito osso duro (as mães). "A mãe fica deprimida, chora, eu passei, eu sei. Às vezes, desconta na gente. Umas nos tratam que nem cachorro, só porque são particulares. Piores são as de primeira viagem. Não, as avós são piores, dão palpite, deixam a mãe mais nervosa para amamentar."
O Banco de Leite é um biombo, espaço só para geladeira e duas cadeiras. Às 20h50, Fabiana já atendeu quatro lactantes. Massageou oito mamas, fez ordenha manual, compressas de água fria. Etiquetou e guardou mamadeiras. De pé, vela duas mães ligadas por um dos seios às cânulas de uma mesma bomba de sucção.
Uma das funções da berçarista é orientar a mulher sobre aleitamento. Fabiana sabe tudo sobre amamentação. Tem o texto na ponta da língua, vai repeti-lo sempre que levar o recém-nascido à mãe, no ritual da primeira visita. Mas ela mesma deu pouco o peito aos filhos. "Desesperei, chorei." O primogênito, amamentou menos de um mês. Os gêmeos não tinham força para sugar. Hoje estão todos saudáveis.
Chega ao Banco de Leite uma moça quieta. Não entra no papo cri-cri, não está de lingerie, não reclama, não pede ajuda. Todo dia há 30 dias, desde que teve alta, a cabeleireira Maurinda dos Santos chega só ao hospital, faz a ordenha mecânica, armazena o leite do Lucas e em seguida o visita ali ao lado, na UTI. Lucas nasceu de 24 semanas, com 900 gramas. É classificado de "extremamente prematuro". Uma hora dessas Lucas vai ganhar o colo materno, na terapia-canguru.
Auxiliares da UTI lembram de outro prematuro de nome bíblico, teria ficado um semestre por lá. Os pedaços de conversa soam à saudade. A funcionária Rosangela Meirelles esclarece: "A gente acompanha toda a evolução, dá calor, tato, tudo que nenê precisa. A gente se apega, claro". Quanto maior o risco de vida, maiores o tempo de convivência e o vínculo.
Em maternidade top são raros os óbitos. Na antologia das berçaristas, ficou gravado um caso de anencefalia, motivo de aborto legal. "Os pais eram espíritas, quiseram ir até o fim", conta a enfermeira Márcia. Até hoje as funcionárias comentam o estranhamento ao seguir os procedimentos, alimentaram por dias um ser de chance zero.

Nomes
Só na UTI os bebês são conhecidos pelos nomes. Para os sadios, a identificação de praxe é o número do quarto da mãe. Fica difícil interagir com o "619" ou o "726", então a equipe batiza: "Alemão", "Gatinha", "Fofucho". Mãe ou não, auxiliar faz beicinho e fala fino na hora de vestir, dar banho ou colo. Fabiana chama um de "Calvinho" e é dos carecas que ela gosta mais, parecem com o seu primeiro quando nasceu.
Entre a UTI e os saudáveis há o pré-termo, passagem onde os quase-prontos recebem cuidados especiais. Está tudo azul no setor. É a cor da lâmpada da fototerapia, combatendo a amarela icterícia. Nos berços, três recém-nascidos, vigiados pela auxiliar Janice Ortiz, 53, avó de primeira viagem cujo tema predileto é criança em geral e a neta, Giovanna, em especial. Não quer outra vida: "Tem coisa mais gostosa que viver rodeada dessas fofuras?", diz, pegando no colo o "PIG do 723". Pig é "pequeno para a idade gestacional".
O entra-e-sai no Banco de Leite parou, mas no coração do berçário aumenta o vaivém de embrulhinhos em tons pastéis: 1h30, tempo de mamar e distribuir bebês para os quartos. Fabiana passa a ajudar no lugar mais alegre do hospital, o box com vitrine, onde ficam os que já nasceram prontos para a vida. E para as fotos, filmagens e micagens de parentes. Um começa a chorar, vira epidemia.
Princípio de estresse. Uma pediatra pede para acelerar os banhos, precisa examinar os bebês. A auxiliar Selma Teixeira higieniza uma banheira pela quinta vez e em seguida ensaboa a cabeça do 726, sorrindo e oferecendo os melhores ângulos -seus e dele- à câmera que registra o espetáculo pela vitrine. Aos 33 anos, Selma também quer filho, mas cadê parceiro? "Trabalhando à noite, vou achar que hora?" Fabiana achou o dela no curso de auxiliar de enfermagem, ela conta enquanto transforma criança em cone, aquele pacote fácil de transportar e difícil de mãe copiar.
Do centro obstétrico, o pediatra traz o cidadão número 299 do mês de abril, confirmando a média de 300 nascimentos mensais no Santa Catarina.
Na linha de frente da admissão está a enfermeira Márcia. Confere o pé do recém-chegado, a ausência de sulcos plantares anuncia mais um caso de prematuridade.
Em compensação, nasceu um grandão, com cinco quilos e cachos negros, mas esse já está sossegado, vestido de azul e batizado de "jamaicano". Veio também uma menina de quase quatro quilos, filha de outra, de 15 anos.

"Hora do canso"
É a vez de Fabiana repousar. Ela se esconde numa sala, junta duas cadeiras e fecha os olhos por 60 minutos, marcados no relógio. É o descanso previsto na lei - chamam de "hora do canso".
A refeição é feita num cubículo que acomoda uma de cada vez. Não há cadeiras, nem caberia. O lanche fornecido pela instituição é sempre um triângulo de sanduíche e um suco de caixinha. Só tem festa quando tem rapadura. O plantão de auxiliar acabou, 7h. O de mãe só reabre depois do meio-dia, quando acorda, encontra os filhos na casa materna e confere o prontuário oral: Maria Eduarda dormiu bem, João Vitor mamou às três, Pedro Henrique mordeu os gêmeos.
No dia seguinte, Fabiana segue a rotina, faz linha de montagem no berçário doméstico. Às 7h30, tira os filhos da cama, troca, dá banho e mamadeira, põe os gêmeos para brincar no chão e lava ou passa, e João Vitor engatinha até a lavanderia atrás dela, mas por que Maria Eduarda não engatinha? Mãe tem tanta dúvida, o pediatra diz que é normal, cada um tem um ritmo, e Pedro Henrique espalha os brinquedos pelo apartamento, mas é hora de pôr os gêmeos pra dormir outra vez e duas horas depois já reclamam enjoados de berço, a comida quase pronta. Aí Fabiana acorda o marido, almoça, deixa a turma na mãe, são 17h20, enfia o uniforme na sacola e sai adiantada para cuidar do 621, do 623, o número que for, é a vida.



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