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MATERNIDADE
Reportagem acompanhou vida de auxiliar de enfermagem, em casa e nos plantões, para mostrar essa "jornada dupla"
Profissional de berçário é mãe em tempo integral
DA REVISTA
Sobrou para Fabiana. Mãe e
profissional de berçário, ela topou
levar a reportagem aos bastidores
da maternidade. Na última semana de abril, a Revista acompanhou duas de suas noites no hospital e também um pouco do batente caseiro para mostrar um outro tipo de "jornada dupla", o da
mãe que até no trabalho segue firme no papel de mãe.
Para cuidar da prole alheia, a
auxiliar de enfermagem deixa a
própria na casa da mãe. Dona
Marisa "passou a vida avisando
que não ia ficar com neto", mas
paga a língua e mora perto, na
mesma Vila Ema de onde Fabiana
Salgaço sai, às 17h20, para o trabalho. Vai na garupa da moto do
marido, outro auxiliar de enfermagem. Ele pega às 18h, num
pronto-socorro infantil do Cambuci. Ela, às 19h, no Hospital Santa Catarina. Rogério, 25, dois empregos, vira a noite todo dia. Fabiana, 26, noite sim, noite não.
Noite sim, segue de carona até o
serviço dele. Dali qualquer ônibus
serve, em 20 minutos está na Paulista. Adiantada como sempre,
mas assim economiza e não arrisca os seis anos de emprego. Três
filhos, tem medo de ser demitida.
Às 18h30, carregando a sacola
onde se lê "enfermagem", ela anda devagar até a entrada dos fundos do hospital. Ironia é o fato de
precisar fazer hora até bater o
ponto. Numa dessas, foi ao shopping e mandou gravar, no coraçãozinho de ouro preso ao pescoço, a foto de Pedro Henrique (2),
Maria Eduarda e João Vitor (8
meses). "Meus três amores."
O coração de mãe é retirado antes da entrada no berçário. Fica,
como tudo que veio da rua, no
vestiário. Fabiana põe o uniforme. Por cima, o avental de estampa infantil. Pantufas esterilizadas,
está pronta para os bebês. Ela e
mais 14 berçaristas passam o tempo atendendo chamados dos
quartos. Mãe tem muita dúvida.
Nessa noite, ela está escalada
para o Banco de Leite, serviço
com pouco filé mignon (os recém-nascidos) e muito osso duro
(as mães). "A mãe fica deprimida,
chora, eu passei, eu sei. Às vezes,
desconta na gente. Umas nos tratam que nem cachorro, só porque
são particulares. Piores são as de
primeira viagem. Não, as avós são
piores, dão palpite, deixam a mãe
mais nervosa para amamentar."
O Banco de Leite é um biombo,
espaço só para geladeira e duas
cadeiras. Às 20h50, Fabiana já
atendeu quatro lactantes. Massageou oito mamas, fez ordenha
manual, compressas de água fria.
Etiquetou e guardou mamadeiras. De pé, vela duas mães ligadas
por um dos seios às cânulas de
uma mesma bomba de sucção.
Uma das funções da berçarista é
orientar a mulher sobre aleitamento. Fabiana sabe tudo sobre
amamentação. Tem o texto na
ponta da língua, vai repeti-lo sempre que levar o recém-nascido à
mãe, no ritual da primeira visita.
Mas ela mesma deu pouco o peito
aos filhos. "Desesperei, chorei." O
primogênito, amamentou menos
de um mês. Os gêmeos não tinham força para sugar. Hoje estão
todos saudáveis.
Chega ao Banco de Leite uma
moça quieta. Não entra no papo
cri-cri, não está de lingerie, não
reclama, não pede ajuda. Todo
dia há 30 dias, desde que teve alta,
a cabeleireira Maurinda dos Santos chega só ao hospital, faz a ordenha mecânica, armazena o leite
do Lucas e em seguida o visita ali
ao lado, na UTI. Lucas nasceu de
24 semanas, com 900 gramas. É
classificado de "extremamente
prematuro". Uma hora dessas
Lucas vai ganhar o colo materno,
na terapia-canguru.
Auxiliares da UTI lembram de
outro prematuro de nome bíblico, teria ficado um semestre por
lá. Os pedaços de conversa soam à
saudade. A funcionária Rosangela
Meirelles esclarece: "A gente
acompanha toda a evolução, dá
calor, tato, tudo que nenê precisa.
A gente se apega, claro". Quanto
maior o risco de vida, maiores o
tempo de convivência e o vínculo.
Em maternidade top são raros
os óbitos. Na antologia das berçaristas, ficou gravado um caso de
anencefalia, motivo de aborto legal. "Os pais eram espíritas, quiseram ir até o fim", conta a enfermeira Márcia. Até hoje as funcionárias comentam o estranhamento ao seguir os procedimentos,
alimentaram por dias um ser de
chance zero.
Nomes
Só na UTI os bebês são conhecidos pelos nomes. Para os sadios, a
identificação de praxe é o número
do quarto da mãe. Fica difícil interagir com o "619" ou o "726", então a equipe batiza: "Alemão",
"Gatinha", "Fofucho". Mãe ou
não, auxiliar faz beicinho e fala fino na hora de vestir, dar banho ou
colo. Fabiana chama um de "Calvinho" e é dos carecas que ela gosta mais, parecem com o seu primeiro quando nasceu.
Entre a UTI e os saudáveis há o
pré-termo, passagem onde os
quase-prontos recebem cuidados
especiais. Está tudo azul no setor.
É a cor da lâmpada da fototerapia,
combatendo a amarela icterícia.
Nos berços, três recém-nascidos,
vigiados pela auxiliar Janice Ortiz,
53, avó de primeira viagem cujo
tema predileto é criança em geral
e a neta, Giovanna, em especial.
Não quer outra vida: "Tem coisa
mais gostosa que viver rodeada
dessas fofuras?", diz, pegando no
colo o "PIG do 723". Pig é "pequeno para a idade gestacional".
O entra-e-sai no Banco de Leite
parou, mas no coração do berçário aumenta o vaivém de embrulhinhos em tons pastéis: 1h30,
tempo de mamar e distribuir bebês para os quartos. Fabiana passa a ajudar no lugar mais alegre do
hospital, o box com vitrine, onde
ficam os que já nasceram prontos
para a vida. E para as fotos, filmagens e micagens de parentes. Um
começa a chorar, vira epidemia.
Princípio de estresse. Uma pediatra pede para acelerar os banhos, precisa examinar os bebês.
A auxiliar Selma Teixeira higieniza uma banheira pela quinta vez e
em seguida ensaboa a cabeça do
726, sorrindo e oferecendo os melhores ângulos -seus e dele- à
câmera que registra o espetáculo
pela vitrine. Aos 33 anos, Selma
também quer filho, mas cadê parceiro? "Trabalhando à noite, vou
achar que hora?" Fabiana achou o
dela no curso de auxiliar de enfermagem, ela conta enquanto
transforma criança em cone,
aquele pacote fácil de transportar
e difícil de mãe copiar.
Do centro obstétrico, o pediatra
traz o cidadão número 299 do
mês de abril, confirmando a média de 300 nascimentos mensais
no Santa Catarina.
Na linha de frente da admissão
está a enfermeira Márcia. Confere
o pé do recém-chegado, a ausência de sulcos plantares anuncia
mais um caso de prematuridade.
Em compensação, nasceu um
grandão, com cinco quilos e cachos negros, mas esse já está sossegado, vestido de azul e batizado
de "jamaicano". Veio também
uma menina de quase quatro quilos, filha de outra, de 15 anos.
"Hora do canso"
É a vez de Fabiana repousar. Ela
se esconde numa sala, junta duas
cadeiras e fecha os olhos por 60
minutos, marcados no relógio. É
o descanso previsto na lei - chamam de "hora do canso".
A refeição é feita num cubículo
que acomoda uma de cada vez.
Não há cadeiras, nem caberia. O
lanche fornecido pela instituição é
sempre um triângulo de sanduíche e um suco de caixinha. Só tem
festa quando tem rapadura. O
plantão de auxiliar acabou, 7h. O
de mãe só reabre depois do meio-dia, quando acorda, encontra os
filhos na casa materna e confere o
prontuário oral: Maria Eduarda
dormiu bem, João Vitor mamou
às três, Pedro Henrique mordeu
os gêmeos.
No dia seguinte, Fabiana segue a
rotina, faz linha de montagem no
berçário doméstico. Às 7h30, tira
os filhos da cama, troca, dá banho
e mamadeira, põe os gêmeos para
brincar no chão e lava ou passa, e
João Vitor engatinha até a lavanderia atrás dela, mas por que Maria Eduarda não engatinha? Mãe
tem tanta dúvida, o pediatra diz
que é normal, cada um tem um
ritmo, e Pedro Henrique espalha
os brinquedos pelo apartamento,
mas é hora de pôr os gêmeos pra
dormir outra vez e duas horas depois já reclamam enjoados de berço, a comida quase pronta. Aí Fabiana acorda o marido, almoça,
deixa a turma na mãe, são 17h20,
enfia o uniforme na sacola e sai
adiantada para cuidar do 621, do
623, o número que for, é a vida.
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