|
Próximo Texto | Índice
LAR, DOCE LAR?
Ex-prefeito e seu sucessor e ex-aliado, Celso Pitta, fizeram 14 dos 39 conjuntos habitacionais em lotes dos quais não tinham posse
Cingapura de Maluf invadiu terra privada
SÍLVIA CORRÊA
DA REPORTAGEM LOCAL
A Prefeitura de São Paulo se
apossou de áreas privadas sem
autorização judicial e sem indenizar os proprietários e construiu
sobre elas 14 dos 39 empreendimentos do Projeto Cingapura
(habitação popular). As invasões
ocorreram nas gestões de Paulo
Maluf (PPB) e Celso Pitta (PSL).
Exatamente a metade desses 14
empreendimentos irregulares em
favelas contou com US$ 135 milhões de financiamento do BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento), ao qual a prefeitura
informou que era dona das terras.
O fato de a administração ter assumido a propriedade de terrenos
que não eram dela fez com que essas favelas subissem no ranking
das áreas prioritárias a urbanizar.
Com isso -coincidência ou
não- o erro da prefeitura fez
com que a maior parte das favelas
escolhidas para integrar o Projeto
Cingapura -uma das bandeiras
políticas de Maluf (1993-1996) e
Pitta (1997-2000)- estivesse localizada às margens das principais avenidas da cidade.
Uma busca nos Cartórios de Registro de Imóveis evidencia que
muitos dos lotes tomados pelos
Cingapura têm outros donos.
O do Real Parque (zona sul),
por exemplo, à beira da marginal
Pinheiros, foi erguido em terras
de pelo menos dez donos com os
mais diferentes perfis -pessoas
físicas e jurídicas com muitos ou
poucos imóveis pela cidade. Nesse ritmo, os prejudicados pelas invasões podem ser uma centena.
Alguns desses proprietários, como o pai da desempregada Nadair Pereira, 39 -Nelson, morto
em 2001-, foram à Justiça para
paralisar as obras ou pedir o dinheiro da desapropriação. Outros, como a Ceagesp, fizeram
acordos amigáveis para receber a
indenização em parcelas, o que
não ocorreu. Um terceiro grupo
espera o dinheiro, como a Eletropaulo e a família Fanganiello.
Nos tribunais, a prática é ilegal.
Pode ser caracterizada como crime de loteamento clandestino.
Esse é o principal motivo pelo
qual 7.086 famílias que vivem nesses 14 Cingapura ainda não são
donas de seus apartamentos e têm
o teto garantido apenas por um
Termo de Permissão de Uso
-instrumento precário que dá à
prefeitura o direito de requisitar o
apartamento quando quiser.
"Claro que ninguém vai ser despejado, mas a precariedade da
ocupação não respeita o direito à
moradia e deixa essa população à
mercê dos humores do governo e,
o que é pior, permite seu controle
político, como já vi ocorrer", diz a
advogada Letícia Osório, 33, coordenadora para as Américas da
Cohre, uma ONG pelo direito à
moradia, com sede na Suíça.
De acordo com o Ministério Público, o uso não autorizado das
terras particulares fere a lei 6.766,
de 1979. A lei dispensa o poder
público de apresentar o título de
propriedade da terra para iniciar
a construção de habitações populares, mas exige que ele tenha o
mínimo: um documento chamado imissão na posse.
O título de propriedade só é obtido ao final de todo o processo de
desapropriação, que dura anos.
Já a imissão na posse é uma decisão intermediária do Judiciário
para minimizar a incerteza jurídica sobre a posse da terra. Ela costuma sair em meses e, para obtê-la, o poder público deve publicar
um decreto tornando a área de interesse social e depositar na Justiça, no prazo de dois anos, o equivalente à avaliação do imóvel.
Sem a posse, pela lei, nada pode
ser feito na terra. No caso do Cingapura, no entanto, os decretos
foram publicados, mas caducaram, pois os dois anos se passaram sem que o dinheiro fosse depositado. Isso fez com que a terra
continuasse sendo privada. Os
prédios, porém, foram feitos.
"Não é porque o interesse eventualmente é nobre [fazer habitação popular" que se pode tudo.
Não é porque é para pobre que
pode ser de qualquer jeito. Isso
mostra que o poder público fez o
loteamento clandestino do solo
-uma prática que ele deve coibir", diz o promotor João Lopes
Guimarães Jr., da Habitação.
O Tribunal de Contas do Município diz checar a regularidade
desses empreendimentos só até a
publicação dos decretos.
No contrato que assinou com o
BID em 11 de junho de 96, o ex-prefeito Paulo Maluf previu que
as concessões onerosas de uso dos
apartamentos durariam 18 meses.
Para isso, nesse prazo a prefeitura deveria ter a propriedade -ou
pelo menos a posse- de todas as
terras e ter submetido as construções à aprovação. Isso, porém, só
ocorreu com um único empreendimento até hoje e, diferentemente do que foi prometido ao BID,
alguns Termos de Permissão de
Uso já vigoram por oito anos.
Um levantamento feito pela Secretaria Municipal da Habitação
mostra que a falta de segurança
em relação à posse do apartamento ocupa a terceira posição no
ranking de problemas dos conjuntos. Para os moradores, isso só
não é pior do que a falta de segurança e de áreas verdes e de lazer.
A prefeitura, hoje administrada
pelo PT, iniciou a regularização
fundiária dos conjuntos neste
ano. Depositou na Justiça R$
7,581 milhões pela imissão na
posse das terras de 5 dos 14 empreendimentos -o dobro de todo o gasto que fora previsto no
contrato com o BID com a regularização e o registro dos imóveis.
Outros R$ 5 milhões devem ser
desembolsados ainda neste ano
só no Real Parque -aumentando
em 33% o custo final das unidades. Em 2003, mais R$ 7 milhões.
Se não terminar o processo até o
final de 2003, o município poderá
ficar impedido de fazer novos
contratos com o BID até a regularização da propriedade de todos
os imóveis, pois o banco diz não
poder prorrogar mais uma vez o
prazo -já adiado três vezes sem
que nenhum depósito fosse feito.
A Prefeitura de São Paulo avalia
que, nesse prazo, conseguirá regularizar totalmente apenas 50%
das unidades.
Por intermédio de porta-vozes,
os ex-prefeitos Paulo Maluf e Celso Pitta admitiram "falhas eventuais", as quais justificam citando
a "necessidade urgente" de se
construir as unidades. Alguns dos
prédios, no entanto, estão prontos desde 94 sem que nada tenha
sido feito para regularizá-los.
Próximo Texto: Ao BID, prefeitura disse que possuía a terra Índice
|