|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LAR, DOCE LAR?
Informação está em apêndice do Regulamento Operacional do contrato; ato pode representar falsidade ideológica
Ao BID, prefeitura disse que possuía a terra
DA REPORTAGEM LOCAL
A administração Paulo Maluf
na Prefeitura de São Paulo omitiu
do BID (Banco Interamericano de
Desenvolvimento) que alguns dos
lotes sobre os quais seriam erguidos os prédios do Projeto Cingapura eram privados. No contrato
que firmou com o banco e nos relatórios que a ele se seguiram por
cinco anos (1996-2000), afirmou
que as áreas a serem usadas pertenciam ao poder público -ou,
no máximo, a empresas estatais.
Isso significa que a prefeitura
não informou ao banco que muitos dos lotes tinham de ser desapropriados -o que custa tempo e
dinheiro- antes de a propriedade dos apartamentos poder ser
concedida aos moradores.
As primeiras informações equivocadas estão registradas nos
apêndices C e D do Regulamento
Operacional do contrato de empréstimo 938-OC-BR. Consultado pela Folha, o Ministério Público paulista, que desconhecia o erro, disse que ele pode, em tese, caracterizar falsidade ideológica
-crime de "omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar ou
nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que deveria ser escrita com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou
alterar a verdade". A pena pode
chegar a cinco anos de prisão.
A existência dos apêndices como parte integrante do contrato
de empréstimo está citada no
item 2 do documento principal,
assinado pelo então prefeito Paulo Maluf e pelo presidente do BID,
Enrique Eglesias, em 1996.
Ranking distorcido
Nos apêndices, aparece um ranking -em ordem de prioridade- das favelas elegíveis para a
verticalização. Elas são ordenadas
de acordo com seis critérios: distância das redes de infra-estrutura, compromisso prévio com e da
população, domicílios em áreas
de risco, densidade de ocupação e
disponibilidade da área.
No indicador "disponibilidade
da área", o Regulamento Operacional do contrato prevê que a favela tenha zero, meio ou um ponto. Vale um quando a área onde
ela está é disponível para a concessão de títulos de propriedade
sem necessidade de aquisição, desafetação ou autorização legislativa. Se a área precisa de desafetação, a favela tem meio ponto. Se
precisa de aquisição de particulares, não pontua. No ranking, porém, a propriedade real das áreas
nem sempre aparece.
A favela Chaparral, por exemplo, quarta no ranking geral, estava, segundo a prefeitura, em terreno público. Teve, por isso, meio
ponto em disponibilidade de
área, pois alguns lotes, apesar de
públicos, deveriam ser livres ou
destinados a espaços verdes e de
lazer. Por isso tinham de ser "desafetados" -termo técnico usado
para dizer que deveriam ter sua
destinação alterada por lei.
Na prática, porém, a Chaparral
(zona leste) -e o Cingapura que
hoje ocupa parte da área original
da favela- estava também sobre
terras privadas -uma delas, por
exemplo, pertence a uma transportadora para a qual a prefeitura
depositou em junho passado R$
84 mil para conseguir a imissão
na posse. Ou seja: a favela não deveria ter pontuado no quesito
"disponibilidade de área".
Das favelas cuja urbanização foi
financiada pelo BID já se sabe que
o mesmo ocorreu com a Dom
Macário, a Santo Antônio-Parque
Otero e a Heliópolis. Os Cingapuras Nicarágua-Vila da Paz e Madeirit Votorantim, cujas favelas
originais aparecem no contrato
com o BID como localizadas em
áreas da Caixa Econômica Federal e de uma "empresa estatal"
também têm trechos sobre lotes
de propriedade privada.
Se as informações prestadas fossem corretas, as favelas perderiam posições no ranking, ficando, talvez, atrás de outras que não
chegaram a ser verticalizadas.
Lento e insatisfatório
Sem saber exatamente os motivos do atraso na regularização da
propriedade dos apartamentos, o
BID começa a cobrar, em abril de
1999, que a medida seja executada, já que estava inicialmente prevista para ocorrer no final de 1996,
estando o contrato todo terminado em julho de 2000.
É em abril de 1999, pela primeira vez, que os técnicos do BID escrevem, em um relatório de fiscalização, que a execução do programa é lenta e insatisfatória, citando a falta de regularização das
terras como um dos motivos.
"A missão registra preocupação
com o notório atraso do processo
de desafetação das áreas públicas,
a regularização das áreas e a titulação da propriedade nas favelas.
Esse atraso gera sérias dúvidas na
população em relação ao verdadeiro compromisso da prefeitura
de entregar os títulos habitacionais, o que pode explicar a inadimplência registrada", escreve
Juan Francisco Reyes, chefe da
missão de abril de 1999.
Reyes sugere que a prefeitura
contrate serviços privados que
agilizem a regularização dos imóveis, usando o dinheiro do próprio financiamento -mas em
nenhum momento cita que foi informado de que alguns dos empreendimentos estão em área privada. Na ocasião, segundo o representante do BID, ainda se acreditava que a regularização poderia ocorrer dentro do prazo de
execução da infra-estrutura.
As recomendações se repetem,
sem providências, nos relatórios
das missões de inspeção de julho,
agosto e dezembro de 1999 e de fevereiro e maio de 2000.
Na primeira visita do BID feita
em 2001 -já no governo de Marta Suplicy (PT)-, o programa
surge classificado como "duvidoso" em relação ao cumprimento
dos objetivos. "A regularização
fundiária dos terrenos onde se
construíram favelas é muito mais
complexa do que se informava ao
banco em missões anteriores", escreve Patrício Naveas, do BID.
Uma nova missão do banco
chegará a São Paulo na segunda-feira da semana que vem.
(SÍLVIA CORRÊA)
Texto Anterior: Lar, doce lar?: Cingapura de Maluf invadiu terra privada Próximo Texto: Só 28% ainda pagam prestações Índice
|