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RIVALIDADE HISTÓRICA
Frase de prefeito carioca revive rixa que remonta às capitanias hereditárias, segundo acadêmico
SP não se acha "feia", como quer Maia
SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL
"Uma assertiva do poeta: "Que
me perdoem as feias, mas beleza é
fundamental"." A frase acima foi
dita na segunda pelo prefeito do
Rio, Cesar Maia, referindo-se a
São Paulo, segundos depois de esta ter sido preterida como a cidade que vai disputar o privilégio de
ser a sede das Olimpíadas de 2012.
Não surpreende o fato de o polêmico mandatário maior do balneário fluminense ter lançado
mão de um verso machista de um
poeta machista ("Receita de Mulher", de Vinicius de Moraes) e de
tê-lo citado errado (o correto é
"As muito feias que me perdoem/
Mas beleza é fundamental").
A surpresa vem da falta de reação da feia em questão. Estaria tão
em baixa assim a auto-estima de
São Paulo e do paulistano?
"Não concordo", disse à Folha a
psicanalista Miriam Chnaiderman, que afirma ter presenciado
já na terça pessoas revoltadas com
o comentário em filas de banco.
"O que houve foi uma disputa do
real, que era São Paulo, contra o
mito, que era o Rio, um mito internacional, de Copacabana, que
não passa pela Cidade de Deus.
Venceu o mito, é claro."
Para a ensaísta, autora do documentário "Arma na Mão", o momento pelo qual o país passa privilegia a imagem. Segundo ela, isso tem norteado todas as decisões, inclusive no governo federal.
"Por isso ninguém veio a público
defender São Paulo, ninguém
quer ficar na contramão do momento, que é de puro marketing."
Porcão provoca
No dia seguinte à decisão, a
churrascaria Porcão, tradicional
ponto do Rio, publicou anúncio
de meia página nos jornais locais
em que um céu cinza da avenida
Paulista com um broche vermelho escrito "não, obrigado", típico
de rodízios, contrastava com uma
vista da praia de Botafogo com o
broche verde "sim, por favor".
A imagem, para ficar na discussão levantada pela psicanalista,
colocou ainda mais lenha numa
fogueira que parece eterna, a da
rivalidade Rio x São Paulo. Ponha
eterna nisso: "Essa briga tem origem provavelmente na época das
capitanias hereditárias, que lutavam para ser autônomas e estavam isoladas umas das outras",
disse André Martin, professor de
Geografia Regional da USP.
De acordo com o acadêmico, as
diferenças entre paulistanos e cariocas são mais profundas do que
se supõe. O melhor exemplo é o
fato de os naturais da cidade de
São Paulo se chamarem de "paulistas" e os seus vizinhos do Estado do Rio se tratarem todos por
"cariocas". "A dicotomia do gentílico sintetiza nossa diferença."
Assim, o povo do planalto paulista se enxerga inserido numa
unidade federativa, o estadual acima do municipal, enquanto o povo do litoral ainda se vê como a
capital federal, uma cidade independente de sua unidade federativa, muito ligada ao estrangeiro.
"Tocos de dentes"
Se esse for o critério de desempate, aliás, a balança pende. Pelo
menos se o estrangeiro em questão for Claude Lévi-Strauss, 94.
Em seu livro "Tristes Trópicos",
de 1955, o antropólogo franco-belga descreve assim a Cidade
Maravilhosa: "O Pão de Açúcar, o
Corcovado, todos esses pontos
tão louvados parecem ao viajante
que penetra na baía como tocos
de dentes perdidos nos quatro
cantos de uma boca banguela".
Já a capital paulista rendeu um
livro-homenagem, "Saudades de
São Paulo", lançado em 1996 pela
Companhia das Letras, que reúne
fotografias feitas por ele entre
1935 e 1937, apresentadas por um
texto quase sempre elogioso.
Não importa. O carioca não pretende deixar barata a derrota. Em
texto publicado anteontem, o colunista Arthur Dapieve achou
bem-feita a derrota paulistana. "A
Grande Itu de Marta Suplicy "se
acha'", escreveu. "No miolo chique da megalópole, vive-se num
delírio de fantasia da afluência."
É desse miolo que saiu o autor
do maior sucesso atual de audiência da carioca TV Globo, Manoel
Carlos, que cria do nada páginas e
páginas diárias do folhetim "Mulheres Apaixonadas". Pois aí também aparece a rixa Rio-SP. O teledramaturgo decidiu matar no
episódio de ontem um personagem, vítima de bala perdida.
O evento tem lugar num hotel
do Leblon, o que valeu protestos
de associações de turismo e proibição da subprefeitura da zona sul
de que a cena seja gravada lá. Como solução, alguém sugeriu que a
personagem morresse envenenada em São Paulo. "A idéia partiu
de algum engraçadinho sem graça, que por aqui existem muitos",
disse à colunista Laura Mattos, da
Folha, o autor, que mora no Rio.
"Siga o dinheiro"
No bate-boca, há opiniões equilibradas, como a da apresentadora de TV Lorena Calábria, carioca
que há 12 anos escolheu São Paulo
para morar. "Amo e odeio as duas
cidades com a mesma intensidade", disse ela. "Assim como as
mulheres, não existem cidades
feias, e sim maltratadas."
Com ela concorda uma especialista no assunto, a cirurgiã plástica
Ana Helena Patrus, dona da Clínica Santé, destino de nove em dez
celebridades que se submetem a
operações estéticas, vindas em
igual número tanto de uma cidade quanto de outra. "A beleza é
um conjunto de coisas; São Paulo
pode perder em beleza natural
mas ganha em outros pontos."
Há quem filosofe, como Arselino Tatto (PT), presidente da Câmara dos Vereadores. "Para nós,
paulistas, a feiúra é um ato", respondeu. "A beleza de São Paulo
reside no gosto de ser São Paulo."
Há quem recorra ao esporte, como a apresentadora de TV Astrid
Fontenelle, carioca de nascimento, hoje paulistana da gema. "A
garota carioca, flamenguista que
eu era ficou por lá. Aqui estudei
de verdade, li de verdade, fiz amigos de verdade. E virei corintiana
naquele 3 x 0 do Romário em cima do Amaral, lembra?"
E há quem ironize, caso do jornalista Paulo Henrique Amorim,
outro carioca paulistano por adoção. "São Paulo é tão feia quanto a
Cameron Diaz: tem nariz feio, boca grande, mas...". E evoca a economia: "Você se lembra do conselho do Deep Throat ao repórter
do caso Watergate? "Follow the
money" (siga o dinheiro)."
Talvez a melhor frase tenha saído da boca do presidente da
Anhembi Turismo e Eventos, Cesar Marcondes, o equivalente
paulistano ao secretário da área,
depois de ouvir protesto de dezenas de entidades, que fizeram
uma moção de desagravo ao prefeito carioca no âmbito da Comissão SP 450 Anos. "Prefiro responder Vinicius com Caetano: "Narciso acha feio o que não é espelho'".
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