|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Arquiteto que acompanha há sete décadas as transformações da cidade aponta os erros e os acertos do crescimento urbano
Uma relação espacial com SP
LUIZ CAVERSAN
DA REPORTAGEM LOCAL
A igreja Nossa Senhora do Brasil, localizada na esquina da avenida Brasil com a rua Colômbia,
possui esculturas reproduzindo
galos nas pontas de suas torres. As
peças foram colocadas ali para,
além de ostentar um dos símbolos
do cristianismo, desempenhar
função bem prosaica: disfarçar a
presença de duas luzes vermelhas.
As lâmpadas instaladas a menos
de trinta metros do solo serviam
para balizar a aproximação do aeroporto de Congonhas, isto quando os aviões voavam baixo numa
cidade em que os arranha-céus
eram raros e as torres da pequena
igreja se projetavam isoladas na
então pacata região dos Jardins.
O arquiteto Paulo Mendes da
Rocha se diverte contando a história, exemplo da transformação
por que passou a cidade em que
vive há sete décadas. Ainda mais
porque foi ele mesmo quem, a
mando do arquiteto Bruno Simões Magro, desenhou os galos
colocados nos cumes.
Ver surgir a igreja hoje tradicional é apenas uma entre as muitas
vivências de Mendes da Rocha ao
longo de seu intenso relacionamento com a cidade que adotou
desde criança, quando aqui chegou vindo de Vitória (ES).
É por justamente por conta dessa proximidade histórica com a
evolução da metrópole que ele
mantém uma visão peculiar a respeito de São Paulo. Ao mesmo
tempo em que ele a considera
uma das melhores cidades do
mundo para se viver, como já disse mais de uma vez, mantém uma
crítica rigorosa aos rumos dados à
expansão urbana, que afasta cada
vez mais as pessoas do coração da
cidade, redundando no esvaziamento do centro.
Como vive e trabalha na região
central -seu escritório fica no
prédio do Instituto de Arquitetos
do Brasil, na rua Bento Freitas-,
sente na pele os reflexos da deterioração a que foi submetida
aquela região.
Por conta da profissão do pai,
engenheiro, Mendes da Rocha
desde cedo esteve em contato
com as transformações da cidade,
assim como com obras realizadas
pelo pai fora daqui. Foi nessa época que começou a se entranhar
em seu espírito a concepção de espacialidade que sempre teve como parâmetro para observar e interferir na estética urbana.
"Meu pai me levava a todas as
obras -da construção do porto
de São Sebastião à do aeroporto
de Congonhas", diz.
Ele se recorda que uma das opções para abrigar o aeroporto era
a área onde hoje se encontra o
parque do Ibirapuera. Também
lembra que chegou a participar,
junto com o pai, de vôos experimentais em trimotores alemães
Junkers, dos primeiros a operar
em Congonhas.
Por essa época a família de
Mendes da Rocha morava em um
casarão da avenida Paulista. "Na
verdade era uma espécie de pensão, perto da Brigadeiro Luís Antônio." O primeiro colégio que
frequentou, o Paes Leme, ficava
na esquina da avenida com a rua
Augusta, onde hoje é o banco Safra. Dali passou para o colégio São
Luiz, na esquina com a Bela Cintra, de onde partiu, sozinho, aos
16 anos, para uma temporada de
três anos no Rio de Janeiro.
"Foi a época da formação da minha personalidade. Vinha de um
local, Vitória, onde havia uma
confluência internacional por
causa do porto, passara pelo Rio
de Janeiro, capital da República, e
vivia na São Paulo das grandes
transformações."
Transformações que obviamente ainda não haviam levado a cidade às "loucuras" de hoje, em
que as crianças "são isoladas em
carros blindados". Retomando os
estudos no Colégio São Bento,
Mendes da Rocha ia de casa, na
rua José Maria Lisboa, à praça Patriarca de bonde. De lá, cruzava
toda a rua São Bento a pé, diariamente. "Foi uma passagem de
educação e civilização muito interessante, principalmente se comparada com a vida maligna de hoje em dia."
O arquiteto abre um parêntese
na sua história para apontar o que
considera um exemplo de erro
crasso no sentido de afastar a população da cidade: "Quando, nos
anos 70, o metrô chegou à praça
da República, o colégio Caetano
de Campos, escola modelo e que
abrigava centenas de jovens promissores, foi simplesmente desativada. Um absurdo total."
De volta à dupla vivência arquitetura/São Paulo, ele recorda que
fez vestibular em 1949, não na Escola Politécnica, como era de se
esperar. "Acontece que meu pai
era o diretor da Poli, que ainda
abrigava os cursos de arquitetura
-nessa época foi criada a Faculdade de Arquitetura da USP na
rua Maranhão. Por que não fui
para a Poli? Talvez porque tivesse
pudor. Não quis me arriscar a fazer besteiras na casa de meu pai.
Acabei indo estudar no Mackenzie, onde tinha de pagar."
Antes mesmo de começar a faculdade, a arquitetura já fazia parte do seu dia-a-dia, uma vez que
trabalhava como desenhista para
Luiz Maiorana, que projetou diversas casas da família Matarazzo.
"O escritório era na rua Marconi.
Eu frequentava o Masp, [então]
na rua Sete de Abril, e foi nessa
época que passei a ter contato
com a intelectualidade local."
Uma dos elementos que Mendes da Rocha sempre identificou
no processo de transformação da
cidade de São Paulo é o desejo de
fazer. "Esse desejo, como uma visão erótica que abre a perspectiva
da beleza da cidade, levou, por
exemplo, a que se construísse Veneza, na Itália, uma cidade fantástica erguida sobre canais e pântanos." No caso de São Paulo, porém, o que ocorre é o que ele chama de "mal da degenerescência",
provocado sobretudo pela especulação. "Veja o caso do prédio
vertical. Esse tipo de edificação é
uma virtude, desejável, uma idéia
feliz. Mas não para ser feito do
modo que se faz, erguendo-o sobre a matriz de uma casa comum,
naquele espaço delimitado e que
deveria servir a outro fim. Isso só
poderia resultar em desastre."
Um exemplo de edifício vertical
bem sucedido: o Conjunto Nacional, que fica entre a avenida Paulista, alameda Santos, rua Augusta
e padre João Manoel e onde ele teve escritório nos anos 60: "O projeto de David Liberkind é de um
edifício ideal, porque ocupa todo
um quarteirão, tem uma excelente área para comércio e entretenimento, galerias que desembocam
em todas as ruas, unidades para
escritórios e para moradias e garagens subterrâneas que dão em
ruas secundárias."
A carreira de Paulo Mendes da
Rocha deu um grande salto apenas três anos depois de sua formatura, em 1954. Foi quando ganhou
o concurso para a construção do
ginásio do Clube Atlético Paulistano. Além da obra em si, que o
projetou nacionalmente, ele venceu, com o mesmo trabalho, o
prêmio internacional da Bienal de
Arquitetura. O que lhe trouxe
mais prestígio, mais trabalho e
contatos definitivos, como o que
estabeleceu com Ciccilo Matarazzo, "um homem gentil e extremamente empreendedor".
No começo dos anos 1960, Paulo Mendes da Rocha foi convidado para ser assistente de Vilanova
Artigas, "o principal estruturador
da FAU e seu grande professor".
Ele lecionou na faculdade até ser
compulsoriamente aposentado
pelo regime militar em 1969. "Eu
tive uma dupla punição, porque
fui aposentado e depois proibido
de fazer qualquer tipo de trabalho, direto ou indireto, para o governo. Tive que me virar, não sei
como, até ser anistiado nos anos
80, quando voltei à FAU."
Aliás, voltou para um local aonde, segundo ele, a faculdade nunca deveria ter ido.
"Foi um erro a construção da
Cidade Universitária. Você tinha
a Politécnica, tinha a faculdade de
medicina, a faculdade de direito e
a FAU, todas circundando o centro da cidade, dando vida a ele.
Todo arquiteto sabe que a cidade
é a escola primordial. Portanto
não se pode levar a escola para fora da cidade, como foi feito."
Tampouco que a população seja
apartada da cidade por conta de
equívocos de naturezas diversas.
"O delírio da exploração mercadológica faz com que surja uma
extensão absurda da malha urbana. De um lado, as populações
mais pobres são levadas para cada
vez mais longe. De outro, são os
ricos que procuram se esconder
longe de tudo. Ou seja, vende-se
aquilo que não é a cidade, vende-se o medo, numa concepção fascista da vida."
De qualquer maneira, de acordo
com o que pensa Paulo Mendes
da Rocha sobre o papel dos formuladores urbanos e da própria
existência humana na urbe, pode-se ter esperança de que nem tudo
está perdido.
"Deve-se amparar a imprevisibilidade da vida, mas sem conter,
delimitar. Porque o homem,
quando não vislumbra saída, produz a obra de arte. Em confronto
com o limite, ele convoca a condição construtiva para ver se é possível haver o gênero humano eternamente no universo."
Texto Anterior: Ubatuba: Dupla fará apresentação musical Próximo Texto: Gilberto Dimenstein: Por que a goleada de Lula é um engano Índice
|