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DANUZA LEÃO
Vivendo e aprendendo
A vida é mesmo muito incrível: basta um fato para que
se caia num desespero profundo, e
basta um outro fato para que se
passe em um minuto, do fundo
desse desespero, a ser a pessoa
mais feliz do mundo.
Olha o que me aconteceu: depois de uma gripe forte, o médico
pediu os exames de praxe, entre
eles uma radiografia do pulmão.
Dois dias depois, fui buscar o resultado e -fumante da vida toda- me peguei morrendo de medo de abrir o envelope; resolvi, então, deixar para ver em casa. De
preferência, nunca.
No caminho, tive a mais absoluta certeza de que tinha câncer;
afinal, dentro da lógica feminina,
se o médico pede uma radiografia, é porque ele já sabe.
E já que era essa a realidade,
precisava aprender a lidar com
ela.
Em primeiro lugar, tinha que
falar com alguém; mas com
quem? Nenhuma amiga é suficientemente discreta, e daí a pouco todos saberiam que estava à
beira da morte. Não que isso seja
uma desonra, mas não gostava de
pensar que minha saúde -e
meus pulmões- seria assunto de
mesa de bar. Então o melhor era
ficar quieta.
Mas para ficar quieta também
não dava; pensei em voltar à análise, mas lembrei que em janeiro/
fevereiro todos os psi estão de férias. Além disso, minha morte
merecia mais de 50 minutos para
ser discutida -para mim, pelo
menos.
Contar à família, nem pensar.
Por vaidade, onipotência ou os
dois, sempre tive horror a incomodar ou preocupar as pessoas
de quem mais gosto, e sobretudo
não queria nem pensar no pior:
no tratamento.
Além da saúde, ia perder os cabelos -o que, sempre segundo a
lógica feminina, era pior que tudo. Lembrei de quando o cabeleireiro cortava dois centímetros a
mais do que devia: além de chorar e cair em profunda depressão,
queria me trancar em casa até
que eles crescessem. Ah, os cabelos: se tivesse guardado numa
poupança todo o dinheiro que
gastei em cremes e shampoos durante a vida, seria hoje uma mulher rica. Rica não, milionária.
Fui pensando e decidi: não ia
contar para ninguém, nem me
tratar. Sempre tive fama de corajosa (não sei por que) e vou fingindo só para manter a pose, mesmo me acabando por dentro. Nada de hospitais, nada de tratamentos, nem o médico ia saber.
Não se pode confiar na discrição
de médicos jovens com os quais se
cruza em restaurantes e festas;
eles têm a mania de querer tratar
as doenças e talvez, na melhor das
intenções, procurasse uma pessoa
da minha família para dividir a
responsabilidade. Não: nem ele ia
saber.
Prática, resolvi, isso sim, botar a
vida em ordem -papéis, documentos, para (mais uma vez) não
dar trabalho a ninguém. E quem
sabe tomo um avião e vou para
bem longe, para curtir o que me
resta de futuro? Paris, uma praia
do Nordeste, sei lá?
Feliz não estava, mas essa hora
chega para todo mundo, e o jeito
era tentar enfrentar os fatos da
melhor maneira possível, e pronto. Mas por dentro só Deus -se
ele existe- sabia como estava. E
quem acha graça em morrer?
Cheguei em casa, me espichei
no sofá, acendi um cigarro e me
preparei para abrir o envelope.
Acendi outro, respirei fundo
-nunca tinha prestado atenção
em como é bom respirar- e enfrentei. Não tinha nada.
Fui para a janela olhar o mar e
me senti, de novo, imortal. Mas
pelo sim pelo não, cigarro nunca
mais.
E pensei que todos nós deveríamos ser ameaçados, às vezes, de
perder coisas às quais não damos
a menor importância, como a
saúde, por exemplo.
Para, como dizia minha avó,
aprender a valorizar.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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