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DIREITO CIVIL
Lei que criou cadastro único nacional não foi regulamentada
Carteira de identidade caducou no ano passado
MARI TORTATO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM CURITIBA
Se toda lei brasileira fosse respeitada, a carteira de identidade
que o cidadão apresenta no banco
para sacar seu dinheiro ou ao policial que o aborda numa revista
não teria nenhum valor.
Se toda lei editada fosse para valer, a carteira de todos os brasileiros teria vencido em 8 de abril do
ano passado, e com ele uma porção de outros documentos que a
maioria leva na carteira.
Sancionada pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 1997, a lei 9.454 instituiu
um único registro de identidade
civil para os brasileiros e limitou a
validade dos atuais documentos
civis a cinco anos. O prazo venceu
em abril de 2002 sem que a lei fosse regulamentada.
O governo não tirou a lei do papel nem para definir o órgão que
centralizaria a criação do cadastro
nacional único, como prevê o artigo 3º, mas a lei está em vigor.
"Está vigente, mas não tem eficácia", afirma o presidente da
OAB (Ordem dos Advogados do
Brasil), Rubens Approbato Machado, 69. Ele explica que, ao depender de norma regulatória, leis
como essa não são auto-aplicáveis, e exemplifica com normas
da Constituição de 1988 que, passados 15 anos da promulgação,
ainda não são aplicáveis por falta
de regulamentação.
O jurista paranaense René Dotti
defende a revogação imediata da
lei e considera que as carteiras e
toda a documentação civil derivada continuam em vigor porque
foi o governo quem não cumpriu
a sua parte. "É o maior paradoxo:
o presidente da República assina a
lei, manda cumpri-la e ele é o primeiro a não cumpri-la", diz. Dotti
integrou a equipe que elaborou o
projeto do novo Código Penal.
Em Blumenau (SC), o procurador da República João Marques
Brandão Néto patrocina uma
ação civil pública propondo à Justiça que reconheça a inconstitucionalidade do artigo 6º da lei. O
artigo diz: "Em cinco anos da promulgação desta lei, perderão a validade todos os documentos de
identificação que estiverem em
desacordo com ela".
"A rigor, todos os documentos
estão sem validade desde 8 de
abril do ano passado", disse. A lei
foi assinada em 8 de abril de 97 e
publicada no dia seguinte no
"Diário Oficial" da União.
Segundo o procurador, a lei fere
o princípio da razoabilidade, ou
seja, não foram fornecidas à população condições para a substituição dos documentos.
Em 2001, o cadastro único chegou a ser argumento do presidente para vetar iniciativas do Senado
de ampliar o número de carteiras
de identidade especiais autorizadas a determinados profissionais,
como advogados e jornalistas.
Com uma dose de ironia, o presidente da OAB afirma que não
pretende aposentar o documento
de mais de 50 anos que continua
utilizando.
Iniciativa do senador Pedro Simon (PMDB-RS), a lei do registro
único passou no Congresso sem
gerar polêmica, embora considerada por advogados e sociólogos
como a mais invasiva das leis sobre a privacidade do cidadão.
Para Approbato, o cadastro único "é o controle que Orwell [George Orwell] previa no livro "1984" [o
clássico de ficção em que o Grande Irmão controla todos e tudo].
Se tivermos um documento único, seremos vigiados pelo poder
público. Essa lei esbarra no princípio das liberdades democráticas", afirma.
A ficção de Orwell também é o
argumento do deputado federal
Luiz Antonio Fleury Filho (PTB-SP) para defender a extinção da
lei. Na legislatura passada, ele foi o
relator de uma proposta do deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ)
nesse sentido. "Com um único
número em todos os documentos, e durante toda a sua vida, será
possível a qualquer um invadir
até seu prontuário médico", diz.
Por ter passado por todas as comissões na legislatura anterior, a
lei do registro único está para voltar à pauta do Congresso. Se depender do empenho do senador
Simon, voltará a ser aprovada. No
final do ano passado, o senador
apresentou um novo projeto,
propondo a renovação do prazo.
O argumento de Simon para defender a criação do registro único
é acabar com a chance de uma
pessoa poder tirar até 27 carteiras
de identidade (nos 26 Estados e
no Distrito Federal). Approbato
diz que basta uma rede de comunicação entre os Estados para eliminar o problema.
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