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DANUZA LEÃO
Num trem
A memória é uma coisa curiosa; de repente você se lembra
de um fato acontecido há 30 anos
e que aparentemente não teve a
menor importância em sua vida.
Só que teve.
Foi assim: ela era jovem e bem
casada e foi à Europa com o marido. Resolveram conhecer uma cidadezinha no interior da Checoslováquia, e na hora de voltar chegaram cedo à estação, para pegar
o trem. Ainda faltavam uns 20
minutos para o trem sair, e ela
botou a cara no vidro da janela
para olhar. Não havia nada para
ver, a não ser um outro trem parado com pessoas também esperando, como ela. Na janela bem
em frente, a dois metros de distância, a cara de um homem rude
e bonito, daqueles que ela nunca
teve chance de conhecer. Ele
olhou, ela olhou; ela desviou os
olhos mas olhou de novo, e nessa
brincadeira levaram uns bons
minutos. Como os dois trens estavam posicionados em direções
opostas (e o marido lia um livro),
ela se sentiu com uma certa liberdade, e quando ele sorriu ela também sorriu -escondendo o rosto
com os cabelos para o marido não
ver. Os trens partiram e cada um
seguiu o seu destino.
Não que ela tivesse pensado nele muitas vezes, mas às vezes lembrava. Lembrava e pensava no
quanto foi intenso aquele momento.
O tempo passou; vieram os filhos, os netos, e um belo domingo,
no sítio, ela está na varanda depois do almoço rodeada pela família, e lembra. Lembra mas não
entende: por que pensar nisso de
repente, a troco de nada? Ah, se
soubesse.
Tenta entender: para ela, esse
episódio foi quase um pecado. Se
estivessem no mesmo trem, ela
não teria nem percebido que ele
estava olhando. Mas naquelas
circunstâncias, naquela cidade
onde, tinha certeza, não voltaria
nunca mais, se permitiu a liberdade de olhar e sorrir para um
desconhecido, justamente por saber que nunca mais o veria, isto é,
sem correr nenhum perigo. Ela
não sabia que quando um homem e uma mulher se olham é
sempre um risco.
Nesse domingo, 30 anos depois,
ela conheceu a nostalgia de não
ter feito outra coisa na vida a não
ser cuidar do marido, da casa, da
família. E pensa: se naquele dia
tivesse descido do trem e embarcado no outro, sem uma só explicação? Que vida teria tido, num
país cuja língua desconhecia, com
uma cultura diferente, sem um
parente, um amigo? Teria sido feliz, pelo menos por uns tempos? E
se fosse hoje, teria coragem?
Faz festa na cabeça de um neto,
se levanta para ir à cozinha cuidar do almoço e fica na dúvida;
teria ou não coragem?
Ela sabe o quanto são inúteis esses pensamentos; mas por outro
lado percebe que naquela varanda, com aquele calor, lembrar daquela manhã gelada naquela cidade tão distante, lembrar daquele desconhecido, talvez o único homem que teve coragem de
olhar sem piscar e sem baixar os
olhos, até que ajuda.
Se sente uma adúltera, e sem a
menor culpa.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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