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BOTICA MODERNA
Setores farmacêutico, médico e governamental querem mais controle na manipulação e fiscalização
Regulamentação de farmácias magistrais é falha
DA REPORTAGEM LOCAL
"Toda vez que uma pessoa abre
uma caixa de comprimido, pega
uma cápsula e engole-a, algum laboratório está recebendo um selo
de confiança virtual, conferido
pelo consumidor. Ninguém sabe
ao certo o que está ingerindo, mas
confia que, na pequena drágea,
está o alívio para algum problema. Essa é a importância de haver
legislação, fiscalização e controles
eficientes para garantir a qualidade dos remédios", explica a ex-diretora do Centro de Vigilância Sanitária da Secretaria Estadual da
Saúde de São Paulo, a farmacêutica Marisa Lima Carvalho, 45.
É esse pacto de confiança que
ainda está sendo elaborado no caso das farmácias de manipulação.
A primeira regulamentação específica para elas foi elaborada pela
Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) apenas em
2000, quando a Resolução da Diretoria Colegiada número 33 (ou
RDC 33) estabeleceu as diretrizes
básicas de atuação do setor.
Quatro anos depois, especialistas dos setores farmacêutico, médico e governamental convergem
para um ponto: a RDC 33 precisa
de aprimoramentos.
"É preferível regulamentar agora do que, daqui a algum tempo,
uma tragédia obrigar ao fechamento de todo o setor", diz o presidente da Associação Brasileira
da Indústria de Química Fina, José Correira da Silva, 48, que lidera
os fabricantes brasileiros de matérias-primas farmacêuticas.
Há mais de três meses um grupo que reúne representações das
farmácias de manipulação, dos
médicos, da Anvisa e de órgãos de
defesa do consumidor discute alterações em pontos nebulosos da
regulamentação atual.
Um dos pontos questionados da
RDC 33 é aquele que permite a
manipulação de medicamentos já
existentes nas prateleiras das drogarias. "Isso é uma incorreção no
cumprimento da resolução. A farmácia não foi feita para competir
com a indústria, mas para preencher os nichos que não são atendidos por ela", explica Vitor Hugo
Travassos, diretor da Anvisa e ex-diretor da divisão farmacêutica
do Hospital das Clínicas.
Por nichos entenda-se aqueles
casos pontuais de pacientes que,
por uma razão ou por outra, necessitam de medicamentos já registrados e produzidos pela indústria, mas em doses não encontradas no mercado. Aí, não há outra saída: é preciso manipular doses fora de padrão industrial.
As farmácias magistrais, contudo, vêm ganhando mercado principalmente por oferecer os mesmos remédios, mas a preços muito mais vantajosos.
Uma medicação feita sob encomenda, que mobiliza um farmacêutico especificamente para sua
formulação, seria, em tese, mais
cara do que outra, produzida em
escala industrial. O que ocorre é
justamente o contrário: tudo no
processo industrial é mais caro
-da série de controles realizados
em cada lote aos impostos que incidem sobre o setor industrial.
Basicamente, são três os controles de processos necessários à fabricação de um medicamento:
1. controle de qualidade da matérias-primas (é pura? contém
agentes contaminantes?)
2. controle do produto manipulado, quanto a pureza e concentrações dos princípios ativos
3. controle de microbiologia
(checa-se a contaminação por
agentes patogênicos)
"Na indústria, ainda há uma série de testes mais aprofundados
que culminam com uma análise
que serve para avaliar se a substância será absorvida apropriadamente pelo organismo humano.
Nada disso é feito nas farmácias
de manipulação. E não há como
fazer isso porque o tempo da manipulação é outro", explica o farmacêutico Silas Gouveia, ex-funcionário da Anvisa.
"Não dá para comparar o controle de qualidade que incide sobre o produto industrializado
com o controle dos remédios manipulados. Na indústria, esses
controles são bem mais completos e intensos. Não há como as
farmácias fazerem todos os controles fórmula por fórmula. Isso é
inviável", diz Gouveia.
Nas farmácias magistrais, os controles sobre matérias-primas ainda estão em fase de implantação.
Um importador de insumos e um
farmacêutico que já trabalhou em
órgãos da vigilância sanitária contaram à Folha o mesmo episódio
ilustrativo em que, felizmente, os
riscos foram abortados:
"No ano passado, uma inundação nos depósitos de um importador de matérias-primas levou à
contaminação e à perda total de
um estoque de insumos. O seguro
cobriu as perdas, e o material deveria ter sido enviado para incineração. Não foi. Tempos depois,
um leilão anunciado num jornal
propagandeava a venda do mesmo lote. Foi preciso que autoridades da vigilância sanitária comparecessem ao leilão para impedi-lo
de se realizar", disse o farmacêutico apoiado pelo importador.
A questão das matérias-primas
fica ainda mais complexa quando
se sabe que hoje há uma diversidade de fornecedores de princípios ativos. Até bem pouco tempo
atrás, o laboratório farmacêutico
que desenvolvia uma patente de
remédio era praticamente o único
fornecedor dessa molécula.
Com a crescimento mundial da
indústria de genéricos, abriu-se
para outros interessados a fabricação de moléculas cujas patentes
já tivessem caído em domínio público. O resultado é que hoje pode-se comprar princípios ativos
em zonas francas do mundo todo,
fabricados na Indonésia, China,
Índia e Coréia do Sul, e 95% das
matérias-primas utilizadas no
Brasil são importadas.
É essa diversificação de fornecedores (existem os bons, mas também existem os maus) que torna
imperioso o rigor no controle e
análise da substância utilizada.
No Brasil, apenas um importador e distribuidor, a SP Farma, de
São Paulo, tem o certificado da
Anvisa de "Boas Práticas de Distribuição e Fracionamento". "Nós
enviamos nossos técnicos para fábricas na China ou Índia, a fim de
que eles fiscalizem in loco as condições em que as matérias-primas
são produzidas", diz Germano
Hansen Jr., da SP Farma, que submete os insumos que comercializa a testes de teor e pureza.
O próprio Hansen admite que
"cerca de 10% da matéria-prima
importada é rejeitada por apresentar teores de umidade e de pureza diferentes do especificado".
Mata? "Não quer dizer que mate.
No máximo, é inócuo", diz.
A farmacêutica Marisa é enfática: "Não há remédio inócuo. Um
remédio inócuo é aquele que deixa de dar alívio a um paciente que
precisa dele. Isso para dizer o mínimo. No caso de antibióticos, tomar um remédio que não combata a infecção pode significar o
agravamento do quadro com
conseqüências imprevisíveis."
Preocupada com isso, a associação das farmácias magistrais iniciou há um mês o seu próprio
programa de qualificação dos fornecedores de matérias-primas.
Apenas outra empresa, também
de São Paulo, a Mase, já possui o
certificado da Anfarmag. São cerca de 60 fornecedores, 17 dos
quais estão inscritos no programa
de qualificação da entidade.
Outro problema sério nas manipulações surge quando, na formulação de um medicamento,
entram as chamadas "substâncias
de baixo índice terapêutico",
aquelas em que a dose letal é muito próxima da dose terapêutica.
"Produtos com a formulação de
ingredientes de baixo índice terapêutico requerem fabricação em
condições bem particulares, difíceis de atingir quando o procedimento é artesanal, como na manipulação", diz a farmacêutica Maria do Carmo Miranda, do Instituto Nacional de Controle de
Qualidade em Saúde, o INCQS da
Fundação Oswaldo Cruz.
Análises do mesmo INCQS, feitas a partir de denúncias de danos
à saúde entre 2000 e 2003, comprovam que as conseqüências podem ser graves. No Hospital Joana de Gusmão, em Florianópolis,
uma menina de dez anos morreu
com suspeita de intoxicação. Ao
se fazer a análise dos comprimidos de clonidina que ela havia tomado e que tinham sido manipulados, encontrou-se um teor
321,84 vezes maior do que o prescrito na receita.
A dificuldade de as farmácias
manipularem as substâncias de
baixo índice terapêutico decorre
da própria forma de fabrico de
um remédio. Na maior parte dos
casos, o princípio ativo de um medicamento é encontrado em doses da ordem de miligramas, misturado a um excipiente inócuo
que compõe a maior parte da
massa de um comprimido.
No caso de "substâncias de baixo índice terapêutico" muito potentes, a dose do princípio ativo é
medida em microgramas, ou milionésimo de grama. Acontece
que a maioria das farmácias de
manipulação não têm equipamentos de pesagem necessários
para a obtenção de tal precisão.
A fim de evitar a ocorrência de
mais casos como os analisados
pelo INCQS, a diretoria da Anfarmag desenvolveu técnicas capazes de contornar o problema da
micropesagem. Coube à Faculdade de Farmácia e Bioquímica da
USP (Universidade de São Paulo)
criar o método que está sendo ensinado a todos os farmacêuticos.
A preocupação de vários técnicos ouvidos pela Folha, no entanto, persiste. "Basta um grão a mais
do princípio ativo para ocasionar
uma superdosagem", diz o farmacêutico Silas Gouveia.
Outras substâncias de baixo índice terapêutico, como a levotiroxina (hormônio da tireóide) e a
digoxina (usada no controle de taquicardias e no tratamento da insuficiência cardíaca), também fizeram vítimas contabilizadas na
análise do INCQS.
O caso da clonidina, entretanto,
ganhou uma dramaticidade extra
pela quantidade de vítimas (14,
com dois óbitos) e pelo fato de
que todas elas estarem tomando o
medicamento "para promover o
crescimento", uma prescrição
não autorizada pela Anvisa, que
apenas autoriza o uso da substância como coadjuvante em tratamentos de hipertensão arterial.
A prescrição de remédios que não
têm usos autorizados pela Vigilância Sanitária é mais um mal
que afeta o setor de farmácias magistrais. Além da clonidina como
estimulante de crescimento, o
professor Elisaldo Carlini, médico
psicofarmacologista da Universidade Federal de São Paulo, aponta
o absurdo uso de drogas que induzem a dependência, sob a forma de receitas manipuladas.
O Brasil é o campeão mundial
em consumo de anfetaminas,
substâncias condenadas pelas
boas práticas de medicina, por
causar séria dependência física e
psíquica e que só deveriam ser
consumidas em casos raríssimos
de narcolepsia (doença caracterizada por períodos de sono breves,
repetidos e incontroláveis).
O recorde mundial de consumo
de anfetaminas, o Brasil consegue
principalmente graças à manipulação de fórmulas emagrecedoras.
Quem não conhece aquela amiga
que emagreceu "n" quilos graças
a uma receita mágica obtida com
um médico e aviada numa farmácia magistral? O professor Carlini
esclarece o milagre:
"Nessas cápsulas, o médico
prescreve, muitas vezes em código, a fórmula do coquetel emagrecedor. Entra a anfetamina, que induz um estado de anorexia, um
calmante de tipo benzodiazepínico (que também causa dependência e serve para rebater os efeitos
da anfetamina), um diurético, um
laxante e hormônio da tireóide, a
levotiroxina. A pessoa murcha."
"E o pior é que o paciente ainda
pensa que o produto é natural,
que a receita foi feita especialmente para ele, só porque foi fabricado
numa farmácia de manipulação.
Natural é só o laxante", explica
Carlini. "Isso deveria ser proibido
em nome da saúde pública."
A gerente de marketing Simone
Chadalakian, 34, precisou de uma
farmácia de manipulação quando
seu médico receitou um medicamento que existia no mercado,
mas numa dosagem diferente.
Era o caso de manipular uma fórmula individualizada.
Simone nem percebeu que foi
alvo de um esquema vedado pelo
Código de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina: ainda
no consultório, recebeu das mãos
de seu médico a receita e o cartão
de uma farmácia. "Para mim foi
melhor ter uma indicação. Eu não
saberia para onde ir."
De acordo com os artigos 98 e
99 do código, é proibida a interação entre médico e farmácias. "Se
há médicos direcionando pacientes para tal farmácia de manipulação, ganhando algum benefício
com isso, está configurada uma
infração médica passível de punição", explica Roberto Luiz D'Ávila, corregedor do Conselho Federal de Medicina.
Práticas vedadas pelo Código de
Ética Médica, como a interação
entre médicos e indústria, já
acontecem na relação entre médicos e farmácias magistrais. "As
farmácias adotaram uma prática
nefasta dos laboratórios, oferecendo propina pela indicação do
médico", conta Gouveia.
"O médico assediado por agentes de farmácias magistrais deve
denunciar a farmácia ao Conselho Federal de Farmácia", afirma
D'Ávila. "Essa é uma prática odiosa e o aceite do médico é uma infração punida severamente, porque coloca em primeiro lugar o
interesse financeiro e não a saúde
do paciente."
(LAURA CAPRIGLIONE E FERNANDA MENA)
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