São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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CÁPSULAS LETAIS

Parentes tomaram comprimidos manipulados para combater dor de artrite em Itabuna (BA)

Overdose faz três mortes na mesma família

DA REPORTAGEM LOCAL

Marcos dos Santos Félix, mecânico de automóveis, chora ao mostrar o velho Maverick amarelo em que costumava namorar a mulher, Carolina Giroto Marinho Félix. Com falta de ar, vômitos e diarréia, Carolina morreu em 17 de maio. Tinha 48 anos, 28 de casada, três filhos e dois netos. No CTI do Hospital Santa Cruz, em Itabuna, sul da Bahia, onde agonizava, Carolina pediu ao marido que descobrisse o que dizimava sua família.
Em seis meses, o mecânico perdeu três parentes. Dois conhecidos também foram parar no CTI -sobreviveram. A série começou em 20 de novembro de 2003, quando o marido da cunhada, José Dantas Araújo entrou em coma. Morte indeterminada, dizia o atestado de óbito.
Então foi a vez de Liliane, 18, filha de José Dantas Araújo. Em 6 de maio, ela passou mal e morreu no dia seguinte.
Carolina e Félix foram à missa de sétimo dia de Liliane. Cansada, a mulher chegou em casa triste e com dor no joelho. Duas horas depois, entrava em coma. Dois dias no CTI e estava morta.
Como passou o dia com a mulher, Félix teve condições de reconstituir seus últimos momentos. Lembrou-se, por exemplo, que ela tomou um remédio para a dor no joelho. Foi a pista.
Recuperando relatos dos sobreviventes e sobre os que morreram, Félix percebeu o denominador comum: antes de entrar em coma, todos haviam ingerido um remédio manipulado.
A tragédia pode ser reconstituída partindo-se de um ano atrás, quando José Dantas Araújo, sentindo dores crônicas nas costas e pernas, foi ao doutor Edson Dantas (eles não são parentes), que lhe prescreveu um remédio manipulado. Também indicou-lhe a farmácia magistral Pharmakos, de sua filha, Tatiana, 21, estudante.
Algo deu errado com o vidro manipulado no dia 18 de novembro de 2003. Dantas tomou um comprimido no dia 19 e morreu no dia 20. Os outros seguiram tomando o remédio, sem relacioná-lo ao ocorrido.
O mecânico enviou alguns comprimidos para análise no Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, o INCQS. Abertas as cápsulas bicolores (azul claro e escuro), ficou constatado que elas continham uma associação de piroxican com colchicina, uma droga para tratar artrite.
Pela receita médica, cada comprimido deveria conter 0,5 miligrama de colchicina. Mas elas continham 42 miligramas, ou 84 vezes mais.
O laudo do INCQS conclui: "Os sintomas clínicos descritos são compatíveis com superdosagem de colchicina." Marcos Félix vive à custa de medicamentos e diz que vai até o fim para punir os responsáveis pelas mortes.

Outro lado
O médico Edson Luiz Ramos Dantas, 50, pai de Tatiana, a proprietária da Pharmakos, diz que as cápsulas de piroxicam com colchicina "certamente foram violadas e tiveram seus teores ampliados até doses tóxicas".
"José Dantas era meu paciente havia mais de dez anos. Ele mandou aviar em quatro oportunidades a receita que lhe passei. Foram 15 comprimidos de cada vez, num total de 60. Por que só agora deu problema?", pergunta. "Estou processando o Marcos Félix por danos morais. A Pharmakos tinha dez anos, sem ocorrência alguma que a desabonasse", diz o médico, recém-eleito vereador de Itabuna.
Ao ser perguntado sobre a possibilidade de se comprar a colchicina pura, para "aditivar" cápsulas terapêuticas, transformando-as em veneno, o médico disse: "Não. Só farmácias podem comprar esse princípio ativo em altos teores." (LC)


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