São Paulo, domingo, 18 de abril de 2004

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RIO SOB TENSÃO

Caminho que corta a Rocinha já serviu à elite carioca como opção para o tráfego entre São Conrado e Gávea

Estrada da Gávea aproxima extremos

PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

No topo da Rocinha, um ônibus começa a dar ré em uma ladeira, no meio de uma curva. O carro de trás buzina, mas logo recua também, assim como os outros quatro ou cinco que o seguiam. Não, não é nenhum "bonde" de traficantes aterrorizando a população, só o trânsito caótico da estrada da Gávea, que corta a favela de ponta a ponta e liga São Conrado à Gávea, bairros de elite da zona sul do Rio de Janeiro.
Antes de estourar a "guerra" na Rocinha, a estrada da Gávea era uma alternativa de caminho. É como se o bairro Jardim Ângela, um dos piores IDHs de São Paulo, ficasse entre os bairros nobres Jardins e Moema, e fosse cortado por uma estrada percorrida pela classe média paulistana para ir de um bairro a outro.
A estrada é um reflexo de diversidade. Há mercadinhos, cabeleireiros, lojas, escolas, Bob's, posto da Polícia Militar e academia de ginástica. Uma das imagens que mais impressionam é justamente a ausência de matiz entre as casas da elite carioca e o começo da favela. Uma começa exatamente onde as outras terminam.
O escritório administrativo do agora ministro Gilberto Gil, por exemplo, fica no início da estrada, ainda na Gávea, um pouco antes da favela. O caseiro Renato Abrahão, 71, trabalha ali há 12 anos e disse que nunca houve problemas. "Aqui embaixo tá tudo tranqüilo, não tem nada", disse, na quarta-feira, quando a guerra do tráfico ainda provocava tensão na Rocinha, algumas curvas acima.
Com os muros grafitados, o escritório foi inaugurado em outubro de 2001. Vigiado por câmeras, tem uma placa com frases de músicas de Gil em cada cômodo. Na recepção, "Vamos Fugir".
Quase em frente ao estúdio, fica o Colégio Americano, que suspendeu as aulas durante toda a semana. Em épocas normais, há uma fila de carros importados na porta. Agora, só carros da PM, que montou barreira. A mensalidade varia de R$ 1.700 a R$ 3.200. Mas a matrícula é de US$ 6.500.
Logo acima está o mercadinho Sorriso, pelo qual Fernanda Carla Rodrigues, 38, paga um aluguel de R$ 450 por mês. "Aqui é melhor. Lá fora uma mulher sozinha não pode trabalhar, vai ser assaltada, estuprada e tudo", diz Rodrigues, que vende, como ela mesma define, "de tudo um pouco". Sua renda é acima da média da Rocinha. Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, o morador da favela ganha R$ 434 por mês.
Daí em diante, é só Rocinha. Na favela, vivem 56 mil pessoas, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No alto da estrada, existe uma concentração maior de comércio e é onde fica o que pode ser chamado de "classe média" da favela. É aí que fica o cabeleireiro em que Maria José dos Santos Martins, 26, faz escova em Ana Cláudia Barbosa, 19. "Ih, tá parecendo a Maria Clara", diz a manicure Roberta Amanda da Silva, 16, para a cabeleireira, quando o fotógrafo vai registrar a cena. "Se ela é a Maria Clara, eu sou a Maria Escura", diz Ana Cláudia, brincando com a personagem da novela.
Nesse momento, a polícia, que ocupa o morro com mais de 1.200 homens, passa com um jovem preso. "O Bruno, meu Deus, estudou comigo esse menino", diz Roberta. O salão também é alugado. Custa R$ 700 por mês.
Numa oficina de motos mais abaixo, Felipe Silva, 22, conserta a sua, quebrada em um buraco. Pai de primeira viagem em setembro, Felipe trabalha 12 horas por dia e faz cerca de 50 viagens, subindo e descendo a estrada da Gávea. Como qualquer um que passe por ali, ele reclama do trânsito. "É muita falta de organização, tem muito carro parado."
Outro ponto de concentração da estrada é o posto da Polícia Militar, onde trabalham seis PMs. Bem ao lado fica o balcão do cearense Antonio Pereira da Silva, 53. Evangélico, diz não temer nada, nem o tráfico. "Se precisar, vou em "boca" falar da palavra de Deus", diz o ex-garçom, que mostra com orgulho uma foto ao lado do escritor João Ubaldo Ribeiro. É também para os PMs que vende os produtos de sua banca, como queijo coalho e farinha do Ceará. "Me dou muito bem com eles."
Em frente ao posto fica uma das escolas da estrada, o Jardim Escola Brincando e Aprendendo. Na quarta-feira, horas antes de o traficante Luciano Barbosa da Silva, o Lulu, ser morto, funcionava normalmente. "Só trabalho com professores formados, fonoaudiólogos, pedagogos", diz Marlene Barbosa, 55, que cobra mensalidade de R$ 70 dos 190 alunos.
Ao lado, a mensalidade é mais barata, R$ 40, mas o negócio é outro. A academia de 200 alunos é freqüentada basicamente por moradores da Rocinha, mas, segundo o professor Wágner, 25, também há gente de São Conrado. Ele pediu que seu sobrenome não fosse publicado.
Mas a maior surpresa da estrada da Gávea fica mesmo no final, pouco antes do Emoções, "A sua casa de shows na Rocinha" -que já teve seu auge na época do funk.
Mario André Sablich, 77, tem uma casa de quatro pavimentos, com cerca de 15 quartos e um estacionamento, e confunde realidade e fantasia. Nos quartos, diz que planeja colocar os melhores cientistas do país.
Em seguida, a estrada chega a São Conrado e ao asfalto.


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