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RIO SOB TENSÃO
Caminho que corta a Rocinha já serviu à elite carioca como opção para o tráfego entre São Conrado e Gávea
Estrada da Gávea aproxima extremos
PEDRO DIAS LEITE
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
No topo da Rocinha, um ônibus
começa a dar ré em uma ladeira,
no meio de uma curva. O carro de
trás buzina, mas logo recua também, assim como os outros quatro ou cinco que o seguiam. Não,
não é nenhum "bonde" de traficantes aterrorizando a população,
só o trânsito caótico da estrada da
Gávea, que corta a favela de ponta
a ponta e liga São Conrado à Gávea, bairros de elite da zona sul do
Rio de Janeiro.
Antes de estourar a "guerra" na
Rocinha, a estrada da Gávea era
uma alternativa de caminho. É
como se o bairro Jardim Ângela,
um dos piores IDHs de São Paulo,
ficasse entre os bairros nobres Jardins e Moema, e fosse cortado por
uma estrada percorrida pela classe média paulistana para ir de um
bairro a outro.
A estrada é um reflexo de diversidade. Há mercadinhos, cabeleireiros, lojas, escolas, Bob's, posto
da Polícia Militar e academia de
ginástica. Uma das imagens que
mais impressionam é justamente
a ausência de matiz entre as casas
da elite carioca e o começo da favela. Uma começa exatamente
onde as outras terminam.
O escritório administrativo do
agora ministro Gilberto Gil, por
exemplo, fica no início da estrada,
ainda na Gávea, um pouco antes
da favela. O caseiro Renato Abrahão, 71, trabalha ali há 12 anos e
disse que nunca houve problemas. "Aqui embaixo tá tudo tranqüilo, não tem nada", disse, na
quarta-feira, quando a guerra do
tráfico ainda provocava tensão na
Rocinha, algumas curvas acima.
Com os muros grafitados, o escritório foi inaugurado em outubro de 2001. Vigiado por câmeras,
tem uma placa com frases de músicas de Gil em cada cômodo. Na
recepção, "Vamos Fugir".
Quase em frente ao estúdio, fica
o Colégio Americano, que suspendeu as aulas durante toda a semana. Em épocas normais, há
uma fila de carros importados na
porta. Agora, só carros da PM,
que montou barreira. A mensalidade varia de R$ 1.700 a R$ 3.200.
Mas a matrícula é de US$ 6.500.
Logo acima está o mercadinho
Sorriso, pelo qual Fernanda Carla
Rodrigues, 38, paga um aluguel de
R$ 450 por mês. "Aqui é melhor.
Lá fora uma mulher sozinha não
pode trabalhar, vai ser assaltada,
estuprada e tudo", diz Rodrigues,
que vende, como ela mesma define, "de tudo um pouco". Sua renda é acima da média da Rocinha.
Segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas, o morador da favela
ganha R$ 434 por mês.
Daí em diante, é só Rocinha. Na
favela, vivem 56 mil pessoas, de
acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No alto da estrada, existe uma concentração maior de comércio e é onde fica o que pode
ser chamado de "classe média" da
favela. É aí que fica o cabeleireiro
em que Maria José dos Santos
Martins, 26, faz escova em Ana
Cláudia Barbosa, 19. "Ih, tá parecendo a Maria Clara", diz a manicure Roberta Amanda da Silva, 16,
para a cabeleireira, quando o fotógrafo vai registrar a cena. "Se ela
é a Maria Clara, eu sou a Maria Escura", diz Ana Cláudia, brincando
com a personagem da novela.
Nesse momento, a polícia, que
ocupa o morro com mais de 1.200
homens, passa com um jovem
preso. "O Bruno, meu Deus, estudou comigo esse menino", diz
Roberta. O salão também é alugado. Custa R$ 700 por mês.
Numa oficina de motos mais
abaixo, Felipe Silva, 22, conserta a
sua, quebrada em um buraco. Pai
de primeira viagem em setembro,
Felipe trabalha 12 horas por dia e
faz cerca de 50 viagens, subindo e
descendo a estrada da Gávea. Como qualquer um que passe por
ali, ele reclama do trânsito. "É
muita falta de organização, tem
muito carro parado."
Outro ponto de concentração
da estrada é o posto da Polícia Militar, onde trabalham seis PMs.
Bem ao lado fica o balcão do cearense Antonio Pereira da Silva, 53.
Evangélico, diz não temer nada,
nem o tráfico. "Se precisar, vou
em "boca" falar da palavra de
Deus", diz o ex-garçom, que mostra com orgulho uma foto ao lado
do escritor João Ubaldo Ribeiro. É
também para os PMs que vende
os produtos de sua banca, como
queijo coalho e farinha do Ceará.
"Me dou muito bem com eles."
Em frente ao posto fica uma das
escolas da estrada, o Jardim Escola Brincando e Aprendendo. Na
quarta-feira, horas antes de o traficante Luciano Barbosa da Silva,
o Lulu, ser morto, funcionava
normalmente. "Só trabalho com
professores formados, fonoaudiólogos, pedagogos", diz Marlene Barbosa, 55, que cobra mensalidade de R$ 70 dos 190 alunos.
Ao lado, a mensalidade é mais
barata, R$ 40, mas o negócio é outro. A academia de 200 alunos é
freqüentada basicamente por
moradores da Rocinha, mas, segundo o professor Wágner, 25,
também há gente de São Conrado. Ele pediu que seu sobrenome
não fosse publicado.
Mas a maior surpresa da estrada
da Gávea fica mesmo no final,
pouco antes do Emoções, "A sua
casa de shows na Rocinha" -que
já teve seu auge na época do funk.
Mario André Sablich, 77, tem
uma casa de quatro pavimentos,
com cerca de 15 quartos e um estacionamento, e confunde realidade e fantasia. Nos quartos, diz
que planeja colocar os melhores
cientistas do país.
Em seguida, a estrada chega a
São Conrado e ao asfalto.
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