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LEMBRANÇAS APAGADAS
Com o envelhecimento da população, enfermidade deve atingir 1 de cada 10 brasileiros idosos
Longevidade transforma Alzheimer no mal do século 21
DA REVISTA
A memória é traiçoeira. A de
Flávio de Oliveira, 77, parece invejável quando ele começa a contar
sobre os barulhentos aviões DC-3
e Scandia que a Vasp operava nos
anos 50, em Congonhas, onde foi
despachante de cargas por quase
quatro décadas. Mas tudo muda
no vôo que o traz do passado ao
presente. No sofá de casa, Flávio é,
às vezes, incapaz de reconhecer
Célia, a mulher com quem está casado há 45 anos, ou os filhos.
Portador de Alzheimer há cinco
anos, a memória do aposentado
falha mais no curto prazo: fatos
recentes se "apagam" da mente
em questão de minutos, e ele esquece que já almoçou e pede para
ir embora "para casa".
O declínio da memória é o sintoma característico da doença,
causada por alterações cerebrais
que matam os neurônios do hipocampo, região que controla a memória, a linguagem e o comportamento. À medida que avança, a
amnésia progressiva vai sendo
acompanhada por outros problemas, como desorientação e dificuldade para realizar tarefas básicas -abotoar a calça, por exemplo. No estágio máximo, chega a
anular o "programa" que confere
identidade a cada ser humano:
comportamento, interesses, gostos e relações pessoais, tudo se
perde nas brumas do cérebro.
O mal de Alzheimer é a ameaça
ruim embutida numa perspectiva
boa, a da expectativa de vida, que
deve continuar melhorando. A
estimativa da OMS (Organização
Mundial da Saúde) é que vire
pandemia em 20 anos.
Atualmente, a doença atinge
cerca de 1 milhão dos 15 milhões
de idosos brasileiros, uma prevalência ao redor de 7%. Nos próximos dez anos, a proporção deve
subir para 10%, segundo Paulo
Henrique Bertolucci, chefe do Departamento de Neurologia Comportamental da Unifesp, um dos
centros nacionais de referência.
"O Alzheimer é a doença do século 21, o grande desafio da medicina. Passamos a vida fazendo
com que o homem viva mais e
com qualidade. Superamos a
mortalidade rápida de doenças
como tuberculose; em 90% dos
casos, câncer diagnosticado precocemente tem tratamento, sem
falar da Aids. Mas e o cérebro?
Continua uma incógnita", diz o
professor de neurologia da Unicamp Jayme Antunes Maciel Jr.
Para seu colega Ricardo Nitrini,
56, da USP, chegar aos cem anos
será cada vez mais provável com o
progresso da ciência. "Mas, sem
controlar ou retardar o início do
Alzheimer, mais de 70% dos centenários serão doentes."
Pesquisas
A preocupação com o avanço da
doença, responsável por 60% dos
quadros de demência (perda da
capacidade mental), é comprovada pelos investimentos em pesquisas científicas. Em 2000, os
EUA aplicaram US$ 1,18 bilhão
em estudos sobre o Alzheimer,
mais do que a metade do valor
gasto com a Aids, mais letal.
Sem cura nem diagnóstico específico, a doença relatada em 1906
pelo médico alemão Alois Alzheimer (1864-1915) progride lentamente até levar o paciente à morte. Especialistas são unânimes:
quanto antes descoberta, melhor.
O tratamento é multifacetado, envolve remédios e reabilitação neuropsicológica.
Nos estágios iniciais, por exemplo, podem ser criadas estratégias
para driblar as dificuldades de
memória, como o uso de agenda
em quase todas as atividades.
Nos casos moderados, o doente
não tem mais capacidade de
aprender estratégias, explica a
neuropsicóloga Anita Taub, 38,
do hospital Albert Einstein. "Então, o tratamento visa melhorar a
qualidade de vida e reduzir a dependência." Nesse estágio, a musicoterapia é uma das técnicas para estimular o humor.
Mas a maioria descobre a doença tardiamente. "Como esquecimentos pontuais são comuns entre os idosos, a doença é normalmente classificada de "coisa de velho", prejudicando o diagnóstico",
afirma o psiquiatra Cássio Machado Bottino, da USP.
O diagnóstico da dona-de-casa
Adeilde Menezes de Moura, 83,
doente há dez anos, levou três
anos para ser descoberto. "Na
época, eu não sabia o que Alzheimer significava, como muita gente hoje em dia ainda não sabe",
afirma sua filha Yone de Moura
Beraldo, 60.
Dois anos depois do diagnóstico correto, Adeilde já não sabia
como tirar um comprimido da
cartela. "Ninguém acreditava. Como ela podia esquecer aquilo? Jamais imaginaríamos que uma
mulher inteligente, que adorava
ler, apreciar a filha tocar piano,
pudesse estar sofrendo da cabeça", lembra Yone.
Adeilde não fala nem anda e depende dos cuidados alheios em
tempo integral. "No começo, não
era fácil. Imagine sua mãe se
transformar todo dia numa pessoa diferente... Era como vivenciar um luto diário", define. Yone
afirma que essa convivência teria
sido inviável sem a ajuda de grupos de apoio, como os organizados pela Associação Brasileira de
Alzheimer. "Aprendi a lidar com
o inesperado, ter paciência e perspicácia para descobrir se ela está
com frio ou fome, se precisa ir ao
banheiro. Quem sente por ela sou
eu. Ela não sabe que sou filha dela,
mas eu sei que ela é a minha mãe."
Novidades
Alguns avanços podem contribuir para mudar o cenário. No
Brasil, o Incor inaugura no final
do mês o primeiro PET scan do
país, capaz de revelar como as células estão funcionando. Até agora, o exame é feito num aparelho
chamado Spect Cerebral.
Na área de medicamentos, a
droga memantina deve chegar ao
mercado brasileiro no segundo
semestre. A grande esperança,
uma vacina, já chegou a ser testada, mas provocou encefalite como efeito colateral.
Mas nem todos os pacientes enfrentam evolução tão avassaladora. A artista plástica Niobe Xandó,
88, 12 anos com a doença, é um
bom exemplo. Mora sozinha com
a empregada, no mesmo prédio
da filha, Lourdes Ribeiro Rosa, 68.
Diferentemente de boa parte dos
pacientes, não sofreu alteração de
humor, continua apreciando música clássica, tango e pintura
-mas deletou a parte mais significativa de sua vida, as obras que
fez ao longo de 55 anos. Costuma
elogiar os quadros exibidos em
exposição ou em casa sem a menor noção de que é a autora.
Pode não ser a melhor situação
do mundo, mas certamente é melhor do que seus médicos esperavam. "Eles pintaram um quadro
deprimente para o futuro da minha mãe. Mas ela está muito viva,
apesar de tudo", diz Rosa.
Leia a íntegra da Revista no site
www.uol.com.br/revista
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