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PASQUALE CIPRO NETO
Por falar em "cordial"...
Há algum tempo, um concurso público pediu aos candidatos o feminino de "peixe-boi".
Haja falta do que fazer!
NA SEMANA PASSADA, motivado
por uma delicadíssima e comovente cena de amor (exibida no "Profissão Repórter" e protagonizada por Roberto Pereira de
Silva, que espera(va) um coração novo, e sua mulher, Silvana Pereira),
troquei com os leitores dois dedos
de prosa sobre a origem e o significado da palavra "cordial" e da expressão "de cor". Como vimos, o adjetivo
"cordial" equivale, ao pé da letra, à
locução adjetiva "de coração".
Essa conversa sobre adjetivos e locuções adjetivas me trouxe à mente
um memorável texto de Rubem
Braga ("Nascer no Cairo, Ser Fêmea
de Cupim", escrito em 1951). Com
seu habitual brilho, Braga desanca
certo tipo de gramático, que "deseja
tornar a língua portuguesa odiosa".
De fato, não faz nenhum sentido
decorar (olha aí o "cor"!) listas e listas de palavras que sabe Deus quando serão usadas, se é que um dia serão usadas e, pior, se é que algum dia
serão encontradas em algum texto.
Em sua crítica, Braga pergunta: "Por
que exigir essas coisas dos nossos
candidatos aos cargos públicos?".
Pois saiba o leitor que já se passaram mais de 50 anos da crônica de
Braga, e alguns "concursos" públicos continuam perguntando bobagens, como se o conhecimento do feminino de "peixe-boi" e o do coletivo de "cobra", por exemplo, demonstrassem domínio da língua e/
ou competência para ler e escrever.
Os episódios que acabo de citar
são reais, caro leitor. Há algum tempo, um concurso público pediu aos
(pobres) candidatos o feminino de
"peixe-boi", que -acredite!- é "peixe-mulher" (a razão -dizem- está
na semelhança entre a genitália do
exemplar feminino do grande mamífero aquático amazônico e a da
mulher). Mas, cá entre nós, francamente... Haja falta do que fazer!
Então a escola não deve nunca
mencionar essas coisas? Deve, sim,
desde que elas tenham alguma razão
de ser. Quando se ouve, por exemplo, a belíssima canção "Canoa, Canoa" (música de Nélson Ângelo e letra de Fernando Brant), que retrata
um cena silvestre, encontram-se estes versos: "Avá-canoeiro prefere as
águas / (...) prefere o rio / (...) prefere
os peixes / (...) prefere remar / Avá
prefere pescar / Dourado, arraia,
grumatá / (...) Piracanjuba, peixe-mulher". Aí vale a pena ir a um dicionário e "descobrir" que "peixe-mulher" é a tal fêmea do peixe-boi, mas
exigir que um futuro oficial de Justiça saiba isso por saber é de lascar.
Que fique claro: ninguém morre
por aumentar o vocabulário, mas isso deve ocorrer naturalmente, a partir do texto, da leitura. Um belo dia,
lê-se, por exemplo, o antológico poema "Satélite" (de Manuel Bandeira),
um dos manifestos do espírito da
poesia modernista, em que o poeta,
talvez por ironia, emprega o termo
"plúmbeo" ("Fim de tarde / No céu
plúmbeo / A lua baça paira / Muito
cosmograficamente / Satélite").
O adjetivo "plúmbeo" corresponde a "de chumbo", assim como "argênteo" corresponde a "de prata" e
"áureo", a "de ouro". Não é por acaso
que o símbolo químico do chumbo é
"Pb", o da prata é "Ag" e o do ouro é
"Au". Por acaso uma época "áurea"
não é uma época de ouro? E a Argentina, nosso rival de ontem? Não há lá
um rio chamado "da Prata"? É a velha volta à origem -ao latim, no caso. Como sempre digo neste espaço,
quando se sabe por que se sabe, a
coisa melhora muito, não? É isso.
inculta@uol.com.br
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