São Paulo, quinta-feira, 19 de junho de 2008

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PASQUALE CIPRO NETO

Por falar em "cordial"...

Há algum tempo, um concurso público pediu aos candidatos o feminino de "peixe-boi". Haja falta do que fazer!

NA SEMANA PASSADA, motivado por uma delicadíssima e comovente cena de amor (exibida no "Profissão Repórter" e protagonizada por Roberto Pereira de Silva, que espera(va) um coração novo, e sua mulher, Silvana Pereira), troquei com os leitores dois dedos de prosa sobre a origem e o significado da palavra "cordial" e da expressão "de cor". Como vimos, o adjetivo "cordial" equivale, ao pé da letra, à locução adjetiva "de coração".
Essa conversa sobre adjetivos e locuções adjetivas me trouxe à mente um memorável texto de Rubem Braga ("Nascer no Cairo, Ser Fêmea de Cupim", escrito em 1951). Com seu habitual brilho, Braga desanca certo tipo de gramático, que "deseja tornar a língua portuguesa odiosa".
De fato, não faz nenhum sentido decorar (olha aí o "cor"!) listas e listas de palavras que sabe Deus quando serão usadas, se é que um dia serão usadas e, pior, se é que algum dia serão encontradas em algum texto.
Em sua crítica, Braga pergunta: "Por que exigir essas coisas dos nossos candidatos aos cargos públicos?".
Pois saiba o leitor que já se passaram mais de 50 anos da crônica de Braga, e alguns "concursos" públicos continuam perguntando bobagens, como se o conhecimento do feminino de "peixe-boi" e o do coletivo de "cobra", por exemplo, demonstrassem domínio da língua e/ ou competência para ler e escrever.
Os episódios que acabo de citar são reais, caro leitor. Há algum tempo, um concurso público pediu aos (pobres) candidatos o feminino de "peixe-boi", que -acredite!- é "peixe-mulher" (a razão -dizem- está na semelhança entre a genitália do exemplar feminino do grande mamífero aquático amazônico e a da mulher). Mas, cá entre nós, francamente... Haja falta do que fazer!
Então a escola não deve nunca mencionar essas coisas? Deve, sim, desde que elas tenham alguma razão de ser. Quando se ouve, por exemplo, a belíssima canção "Canoa, Canoa" (música de Nélson Ângelo e letra de Fernando Brant), que retrata um cena silvestre, encontram-se estes versos: "Avá-canoeiro prefere as águas / (...) prefere o rio / (...) prefere os peixes / (...) prefere remar / Avá prefere pescar / Dourado, arraia, grumatá / (...) Piracanjuba, peixe-mulher". Aí vale a pena ir a um dicionário e "descobrir" que "peixe-mulher" é a tal fêmea do peixe-boi, mas exigir que um futuro oficial de Justiça saiba isso por saber é de lascar.
Que fique claro: ninguém morre por aumentar o vocabulário, mas isso deve ocorrer naturalmente, a partir do texto, da leitura. Um belo dia, lê-se, por exemplo, o antológico poema "Satélite" (de Manuel Bandeira), um dos manifestos do espírito da poesia modernista, em que o poeta, talvez por ironia, emprega o termo "plúmbeo" ("Fim de tarde / No céu plúmbeo / A lua baça paira / Muito cosmograficamente / Satélite").
O adjetivo "plúmbeo" corresponde a "de chumbo", assim como "argênteo" corresponde a "de prata" e "áureo", a "de ouro". Não é por acaso que o símbolo químico do chumbo é "Pb", o da prata é "Ag" e o do ouro é "Au". Por acaso uma época "áurea" não é uma época de ouro? E a Argentina, nosso rival de ontem? Não há lá um rio chamado "da Prata"? É a velha volta à origem -ao latim, no caso. Como sempre digo neste espaço, quando se sabe por que se sabe, a coisa melhora muito, não? É isso.


inculta@uol.com.br

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