|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
VIOLÊNCIA
Engenheiro civil que permaneceu 14 dias aprisionado trocou cooperação por banho, comida e fim de maus-tratos
Sequestrado embala maconha no cativeiro
GILMAR PENTEADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 14 dias de cativeiro, o engenheiro civil Fernando (nome fictício), 36, foi de ator a embalador de
maconha, tentou se "enturmar"
com a quadrilha que o sequestrou
e trocou a cooperação com seus
algozes por banho, comida e o fim
dos maus-tratos. "É a luta pela sobrevivência", resumiu.
Libertado depois que sua família pagou um resgate de R$ 98 mil,
Fernando chega a rir das situações absurdas pelas quais teve de
passar: o cativeiro era um ponto-de-venda de drogas em São Bernardo do Campo (Grande São
São Paulo) e seus carcereiros, três
traficantes locais.
Tanto refém quando carcereiros apresentavam, nesse caso, características majoritárias no perfil
elaborado pela DAS (Divisão Anti-Sequestro) de São Paulo.
Fernando está no grupo de 66%
das vítimas -homem com mais
de 18 anos. Os três carcereiros
eram jovens -na faixa de 20
anos-, desempregados e de baixa renda, como a maioria dos sequestradores presos (veja quadro
nesta página).
A relação entre tráfico e sequestro é o que mais surpreendeu Fernando e os policiais que investigam o caso. Dos sequestradores
presos que tinham antecedentes
criminais, segundo o perfil da
DAS, poucos tinham passagem
por tráfico -70% faziam roubos.
Mas a relação entre os dois tipos
de crime cresce quando o assunto
é cativeiro. "Muitos cativeiros ficam na biqueira -ponto-de-venda de drogas- ou têm alguma relação com os traficantes locais",
afirmou o delegado José Paulo
Zappi, da DAS de São Paulo.
Sequestro à brasileira
"É o sequestro à brasileira", disse o sociólogo Túlio Kahn, pesquisador sobre sequestros e coordenador do Departamento de Estatísticas e Pesquisas do Ministério da Justiça.
O abrasileiramento está no contato direto e permanente entre refém e carcereiro, sem cuidados ou
disfarces para evitar o reconhecimento, como ocorre nos sequestros mais profissionais.
"Hoje, são raros os casos de sequestro com isolamento total da
vítima", afirma Kahn.
A banalização do sequestro ajuda a explicar o relacionamento no
cativeiro e a escolha dos carcereiros. Geralmente, os guardiões da
vítima são recrutados na comunidade local, sabem pouco dos líderes da ação -justamente para
que, se forem presos, não indiquem os autores-, são os que recebem menos dinheiro pelo sequestro e não têm know-how desse tipo de crime.
Entre os carcereiros recrutados
estão também os traficantes locais, como ocorreu no sequestro
de Fernando.
Surpresas diárias
Do primeiro ao 14º dia de sequestro, Fernando viveu momentos de nervosismo e espanto. Foi
apanhado às 16h de uma sexta-feira em uma rua de São Paulo,
quando vistoriava uma obra, por
homens vestidos de terno e gravata. Pelas estatísticas da DAS, a
maioria dos casos ocorre de terça
a quinta, das 18h às 22h.
Nos primeiros dias, os carcereiros avisaram que, se Fernando
cooperasse na gravação de uma
fita de vídeo para sua família, receberia regalias. Ele se negou,
mas, amarrado na cama, não
aguentou as dores no corpo e
aceitou a proposta dos sequestradores dois dias depois.
"Eu falei: bom, como é o negócio da fita aí?", conta Fernando,
rindo, ao lembrar da situação.
Com um fuzil na cabeça, Fernando recitou na gravação o que a
quadrilha queria: que o grupo era
profissional em sequestros e sabia
tudo sobre a família -o que era
mentira.
A encenação gravada pela quadrilha contou com uma câmera
emprestada pela vizinhança e seis
sequestradores dando palpites.
Depois de colaborar, Fernando
foi acorrentado pelo pé e teve direito a banho e a três refeições diárias, duas com marmitex. A estratégia deu certo. A família pagou o
resgate e o engenheiro foi solto.
Antes de ser libertado, porém,
Fernando "cooperou" com a quadrilha mais uma vez, embalando
trouxinhas de maconha.
"Uma das regras é tentar se enturmar, tentar dizer que você é pai
de família, assim como eles", disse
o engenheiro, que deixou o cativeiro sem ferimentos.
Texto Anterior: Há 50 anos Próximo Texto: "Após 2 dias, não conseguia respirar" Índice
|