|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DANUZA LEÃO
A casa da minha avó
Era um sobrado ; na parte de
baixo, o armazém do meu avô,
onde se vendia um pouco de tudo.
Tecidos, renda, sianinha, botões,
fumo de rolo, açúcar, feijão e
grãos de um modo geral -não
em pacotes mas em sacos grandes,
que ficavam no chão. No andar
de cima, onde morava a família,
era a casa de minha avó -nunca
do meu avô.
No armazém havia um balcão
onde os mais chegados iam toda
tarde conversar, com direito a um
copinho de cachaça -um só.
Meu avô, italiano, se vestia de terno, gravata e colete, e em casa se
concedia o direito de tirar o paletó mas sempre de gravata e colete.
Em cima, dando para a praça,
havia uma sala de visitas que só
era aberta em ocasiões muito especiais -que nunca aconteciam-, com sofá, cadeiras estofadas e um piano. Mais para dentro uma grande sala de jantar onde todos almoçavam e jantavam
à mesma hora -11h30 e 19h; em
cada quarto, três ou quatro camas, e banheiro era um só, para
os avós, 12 filhos e os netos que lá
passavam grandes temporadas.
Minhas oito tias só tinham um
objetivo na vida: arranjar um
marido, e bastava que ele fosse
um rapaz bom e trabalhador. Das
oito, só uma trabalhava: era professora, e ia a cavalo, todos os
dias, dar aulas. Foi a única que ficou solteira. As outras se casaram
e para suas filhas só havia um objetivo na vida: casar, ter filhos. E
assim corria a vida.
Nos fundos da casa, havia uma
varanda virada para o rio; ao lado, a cozinha com uma janela de
onde se tinha a vista mais bonita
da casa; por essa janela a empregada jogava o lixo. A palavra ecologia ainda não existia e da varanda nós, crianças, ficávamos
vendo as cascas de laranja e banana sendo levadas pela correnteza.
A grande aventura era dormir
no chão duro. Os menores imploravam para ter o privilégio de
dormir com um lençol em cima
dos tacos e um travesseiro. Era essa a grande farra.
Uma vez por semana vinha um
homem lavar o chão da casa; ele
jogava baldes de água, passava
sabão, depois enxaguava, tirava o
excesso com um rodo e secava
com um pano. Só a sala da frente
era encerada e o brilho dado na
mão, com uma flanela. Quando o
trabalho estava pronto ficava um
cheiro de casa de gente honesta,
de gente direita. Onde foram parar esses cheiros?
As comidas eram de interior:
galinha quase todo dia e, para
dar uma corzinha ao refogado,
colorau. Os legumes eram de roça:
abobrinha, jiló, couve, repolho,
chuchu. Às vezes uma tia perguntava: "Você quer um ovo frito?"
Esse privilégio só acontecia às vezes e só para os netos que estavam
de visita.
As sobremesas eram doce de banana em rodelas e de mamão verde. Esse meu lado da família (da
minha mãe) não era muito de comer. Lá pelas 21h tinha um lanche modesto: café com leite, pão e
manteiga; aos domingos havia
biscoitos, e cada uma das crianças tinha o direito de fazer um do
feitio que quisesse, que era sempre
o mesmo: uma lagartixa e no lugar dos olhos, dois feijões.
Uma ou duas vezes por ano o
rio subia sem violência, tranquilamente, e inundava a cidade; as
pessoas saiam de casa de bote para fazer compras ou uma visita.
Uma enchente era melhor do que
qualquer coisa, e as pessoas tiravam retratos nos botes.
Havia muitas visitas a tias, avós
e primas longínquas. Os laços familiares eram cultivados com cuidado, mas o melhor de tudo era
quando as tias moravam do outro lado do rio, porque aí a gente
atravessava a ponte o que era,
sempre, uma emoção. E ainda
havia a ponte de ferro por onde
passava o trem, que era um perigo. O sonho de todos nós, crianças, era atravessar essa ponte pulando sobre os dormentes, e a minha falta de coragem para desobedecer e atravessar a ponte de
ferro é uma frustração até hoje
não superada. Outra: nunca ter
tomado um banho no rio.
São belas as lembranças de
quem passou parte da infância
em uma cidade do interior com
um rio e uma ponte -duas, aliás.
E melhor ainda é lembrar.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
Texto Anterior: União quer cadastro nacional Próximo Texto: Há 50 anos Índice
|