|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GILBERTO DIMENSTEIN
Gilberto Gil e a cultura da hipocrisia
Gilberto Gil inovou a cultura do poder. Sem inventar
desculpas ao explicar a indecisão
diante do convite para o Ministério da Cultura, disse que, antes do
Brasil, vinha seu próprio bolso.
Como um simples trabalhador
diante de uma chance de emprego, ele calculou as despesas domésticas e não precisou se esforçar para concluir que o salário de
ministro, cerca de R$ 8.000 mensais, vale bem menos do que o cachê de seus shows -nos quais ele
quase sempre se diverte e, invariavelmente, é aplaudido de pé,
com direito a pedido de bis.
Não se tem notícia de um brasileiro que, convidado para ocupar
o cargo de ministro, tenha compartilhado publicamente, sem
constrangimento, o receio de
aceitar apenas por causa do contracheque.
Além de ganhar mal, de viajar
muito, de enfrentar cerimônias
maçantes, de ouvir queixas e pedidos de todos os lados e de correr
o risco de se envolver nas futricas
palacianas no "puxa-saquismo"
da corte, um ministro sempre vai
encontrar alguém disposto a
vaiá-lo. "Vou ter de me virar",
justificou Gil, antes mesmo de ter
sido oficialmente indicado. Informou que buscaria fórmulas alternativas para completar, com bicos, a renda familiar. Mais uma
inovação: bicos de ministros são,
na maioria das vezes, discretos ou
clandestinos.
A franqueza do compositor não
pegou bem entre integrantes da
cúpula do futuro governo nem
entre artistas ou intelectuais, supostamente reverentes ao interesse público acima das mesquinharias privadas. Pediu-se, nos bastidores, que o compositor fosse desconvidado, até porque não estaria afinado com o programa do
PT -argumento que, se levado
às últimas consequências, produziria antes da posse uma reforma
ministerial. Hipocrisia da cultura
do poder.
Sem saber, Gilberto Gil explicitou um dos problemas mais sérios
do Estado brasileiro: paga mal. E,
como paga mal, tem dificuldade
de atrair ou de manter talentos.
Um ministro equivaleria a algo
como um presidente de uma
grande empresa. Mas nenhuma
grande empresa conseguiria
atrair para chefiá-la alguém por
menos de R$ 30 mil mensais, sem
contar os benefícios indiretos.
A cúpula do PT está discutindo
um aumento de 50% no salário
do presidente. O valor hoje é de
R$ 8.800 mensais, abaixo do que
senadores e deputados passaram
a ganhar graças a uma votação
na semana passada, realizada às
pressas e por voto simbólico (o nome de quem votou não aparece
no painel). O salário deles pulou
de R$ 8.240 para R$ 12,7 mil. É
menos do que os R$ 17 mil desejados -mas é um reajuste muito
maior do que o do restante dos
mortais. Quem vale mais: um presidente ou um deputado?
O aumento provocou indignação e talvez não caia muito bem
Lula subir seu salário. Afinal, o
salário mínimo vai, na melhor
das hipóteses, para pouco acima
dos R$ 240, e o reajuste do funcionalismo, no geral, dificilmente vai
ultrapassar (e olhe lá) os 10%.
Mas será que é bom para a democracia um parlamentar ganhar
menos que um gerente de empresa, obrigado, assim, a rastejar por
bicos, muitas vezes clandestinos?
Mais fácil, para agradar ao leitor, seria afirmar que deputados e
senadores não valem um salário
mínimo. Bobagem. É interessante
observar como o PT hoje é vítima
do primarismo de muitas de suas
posições.
Uma das bombas nacionais está
justamente no "efeito Gil". O poder público não tem recursos para
atrair e manter os talentos, a folha de pagamentos está no limite
e, para completar, gastam-se bilhões para manter os privilégios,
amparados no passado pelo PT,
de seus aposentados. No setor público, os funcionários aposentam-se com o valor de seu último salário. É, obviamente, uma conta
que não fecha -ou melhor, só fecha com o dinheiro de quem paga
impostos. A carga de impostos já
passou do limite do suportável.
Um indivíduo de classe média
trabalha cerca de três meses apenas para o governo, que presta
serviços medíocres.
Vamos saber logo no início do
próximo ano se Lula é candidato
ao cargo de estadista pelo tamanho de sua disposição a desarmar
a bomba do funcionalismo. Para
tanto, terá de fazer o que Fernando Henrique Cardoso não fez:
mostrar que não se submete ao
lobby, tão incrustado no PT, e que
consegue podar privilégios nas
aposentadorias.
É a chance de evitar a falência
do Estado a médio prazo, de liberar mais recursos para os gastos
sociais, sem tirar mais dinheiro de
quem trabalha -e, ao mesmo
tempo, de dispor de mais folgas
orçamentárias para chamar o
que existe de melhor na sociedade
para ocupar cargos oficiais.
PS - Se o futuro ministro quiser
fazer algo pela cultura brasileira,
o primeiro e óbvio passo será usar
seu poder para exigir que o patrocínio, bancado pela isenção de
impostos, tenha contrapartida social. Ou seja, se um filme ou uma
peça de teatro, por exemplo, recebem incentivos fiscais, deve haver
cotas de acesso gratuito a esses espetáculos para estudantes de escolas públicas.
E-mail - gdimen@uol.com.br
Texto Anterior: Educação: Brinquedotecas trabalham sem infra-estrutura Próximo Texto: Panorâmica - Campinas: Região apresenta menos católicos Índice
|