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DANUZA LEÃO
Janelas abertas
Nada como o tempo para
que se valorize o passado,
aquele que, quando era presente,
parecia tão bobo. Quantas mulheres não se arrependem de terem
largado os seus maridos na ilusão
de uma vida mais trepidante,
quantos homens não caem de cabeça em uma vida de trabalho
alucinante da qual não podem
mais sair -não têm nem tempo
de pensar na possibilidade-, para poderem ter um carro melhor,
um apartamento fantástico, mulheres inacreditáveis. Um dia eles
se lembram do passado e pensam
"ah, se eu soubesse" -mas aí já
foi.
Quem mora no interior sonha
com a cidade grande, e um dia,
muitos anos depois, se lembra, assim, por nada, de sua infância, faz
uma comparação com a de seus
filhos e chega à conclusão de que
foi muito feliz, muito mais que
eles.
Até os dez anos morei em Vitória, na Praia do Canto. Não existiam casas de ricos, nem meu pai
era rico, e na frente da casa não
havia jardim: umas plantinhas
cresciam por conta própria e só.
Minha casa era de gente normal e
tão perto da praia que o chão do
quintal não era de terra, mas de
areia. Umas árvores de frutas
-mangueiras, goiabeiras, cajueiros e pitangueiras- e o mar, que
era a nossa liberdade. Nas férias,
íamos à praia de manhã cedo, e às
11h já estávamos de volta para tomar banho e almoçar. O cabelo
era lavado todos os dias com sabonete -não havia xampu-,
saíamos do banho fresquinhas e
cheirosas, e se o sol havia queimado muito e a pele ardia, se passava
nas costas e no nariz polvilho misturado com álcool -não havia
ainda Caladryl. Um vestidinho de
algodão com florzinhas, feito em
casa por uma tia -quem não teve uma tia que sabia costurar?-,
e pé no chão. Eu tinha um vestido
para botar nos domingos -não
me lembro para ir aonde- e sapatos eram só dois, um para o colégio e um "de sair", só um.
Andar descalça era muito bom,
e quando se pegava bicho-de-pé
era um acontecimento, já que não
acontecia nada mesmo. O pé começava a coçar, e a tia -a que
sabia costurar- botava os óculos,
pegava uma agulha, passava no
álcool, acendia um fósforo (para
desinfetar) e começava a furar a
pele mais grossa para tentar tirar
o bicho inteiro. Quando conseguia, era uma festa da qual a família inteira participava -e da
família faziam parte as empregadas, que também andavam descalças.
Nós, as crianças, vivíamos inventando moda -umas modas
tão bobas, meu Deus.
Pedíamos para comer com a
mão, o que significava misturar
arroz com feijão e farinha, fazer
um bolinho e botar na boca sem
usar os talheres; mas isso, só às vezes. Outra invenção era pedir para dormir no chão, isto é, em cima
de um lençol no chão duro. Só para lembrar: naquele tempo, não
existiam nem revistinhas em quadrinhos, nem liquidificador, nem
telefone, e quando a galinha botava um ovo, ia todo mundo ao galinheiro para ver. E ainda tínhamos, luxo dos luxos, um galinho
garnizé que era o xodó da casa.
Às vezes, alguém fazia uns biscoitos, e parte da massa era para
as crianças fazerem os seus próprios. A forma era sempre a mesma: uma lagartixa, cujos olhos
eram de feijão preto.
Só para lembrar: não tinha televisão, ninguém tinha a chave da
casa e à noite não se fazia nada, a
não ser esperar a hora de dormir.
A cama era patente, estreitinha,
o colchão de crina, o travesseiro
de paina; dormíamos com as janelas e portas abertas, para o ar
correr; e esta história, contada hoje, parece inventada -só que não
foi.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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