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CIDADANIA
Convivência com diferentes realidades integra currículo da Escola Waldorf de São Paulo, que patrocinou a idéia
Alunos de classe média vivem 5 dias dentro de favela
AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL
"Quando olhei aquele lugar, fiquei desesperada. Esse lugar não
tem jeito... Aí fui vendo a Ana, que
vive procurando classes para ensinar, o Dão, todo dia separando o
lixo reciclável... Eles tinham muita
força. Vou indo embora com uma
grande vontade de mudar isso."
Camila, a autora desse relato,
está entre os 11 alunos da Escola
Waldorf de São Paulo que moraram durante cinco dias na comunidade Horizonte Azul, uma chácara encravada no meio das favelas e bairros mais pobres da zona
sul. Eles estão no terceiro colegial
e têm entre 17 e 18 anos.
Na tarde da sexta-feira, os estudantes, mochilas nas costas, tomaram o ônibus em direção ao
terminal Santo Amaro. Retornavam ao conforto e segurança da
Vila Olímpia, na zona oeste, e dos
bairros vizinhos à escola, onde
moram. Entre suas casas e a Horizonte Azul são cerca de 30 quilômetros, dez deles pela Estrada do
M"Boi Mirim, uma artéria que leva a bairros violentos onde o Jardim Ângela, campeão de homicídios, é apenas o meio do caminho.
Na noite da quinta-feira, os estudantes da Waldorf dividiram
uma roda com adolescentes do
bairro e passaram duas horas trocando impressões. No círculo estavam mais de 20 jovens moradores do bairro, funcionários e voluntários da comunidade Horizonte Azul e integrantes do grupo
Sou da Paz.
A conversa na roda começou
com versículos do apóstolo Tiago
lembrando que "a fé sem obras
para nada aproveita".
A regra é fazer, participar. Dentro da filosofia do educador Rudolf Steiner (1861-1925), seguida
pelas escolas Waldorf do mundo
todo, a convivência do aluno com
diferentes realidades faz parte do
currículo. "A idéia é formar um
cidadão livre, que pode ir para o
mundo com conhecimento, que
tem a oportunidade de conhecer
o outro", explica Fabiana Martins,
31, professora de matemática e tutora daquela turma do Waldorf.
Durante cinco dias, os estudantes participaram de quase todas as
atividades da comunidade, ajudando na creche, na escola, na biblioteca, na cozinha, na horta, na
marcenaria e na coleta de lixo.
Nos relatos daquela noite, a dedicação de seu Dão em separar
plásticos e vidros do lixo pobre do
bairro era citada como modelo
pelos alunos. Outro exemplo era
dona Ana, que há anos alfabetiza
adultos em sua garagem, mesmo
nos períodos em que a prefeitura
corta o pagamento. "Eles são o
contraponto da desesperança",
disse a professora Lua Nogueira,
que acompanhou os estudantes.
Na roda de discussão, Juliana
Oliveira conta que seu dia começou na cozinha, "as panquecas
deram errado, à tarde, no berçário
as crianças estavam agitadas, um
bebê chegou machucado e chorava muito". "É uma experiência
que vou levar comigo."
"Aos poucos as crianças foram
chegando mais e mais, pediam
para eu empurrá-las no balanço.
Elas me sugaram bastante, eu me
diverti muito", relata Marcelo.
Giuliano andou pela chácara,
passou pela creche, parou na
marcenaria. "Faltava madeira para fazer carrinhos novos, ficamos
lixando os que estavam prontos."
Mauro deu uma ajudinha no
suco. "Foram uns 20 litros. Depois peguei uns dados com o João
da horta." João e Dão já fazem
parte dos projetos dos alunos da
Waldorf, vão assessorar a horta e
implantar a coleta seletiva na escola, conta Ricardo.
Nathalia ficou na pré-escola, depois na biblioteca, fez fichas e ensinou a fazer pesquisa. "A gente ficou mais perto das coisas que só
ouvíamos falar."
Juliana Mendes passou a tarde
no berçário. "As criancinhas vinham abraçando, são muito carentes, a gente dava de comer para quatro ao mesmo tempo."
Às vezes as falas tinham um tom
triste de despedida. "Passei o dia
olhando as crianças com vontade
de chorar, porque sabia que tinha
de ir embora", conta Bruna.
Luis Paulo ensinou de futebol a
artes marciais. "Um molequinho
perguntou, "professor, você vai
esquecer a gente quando for embora?" Eu não sabia o que dizer,
mas sei que não vou esquecer."
Uns colegas lamentaram a ausência de Igor, que por compromissos não passava a noite ali.
Na roda, o auxiliar de escritório
Vanderlei Rafael, 20, o Pezão, veio
de Piraporinha, em Santo Amaro,
convidado por um amigo. Meio
sem jeito, pede desculpas antes de
perguntar. "Como é que vocês se
sentem sabendo que estão numa
boa e nós aqui na pior?"
Os estudantes se calam. Uma
das professoras, Lu, assume a palavra. "As realidades são diferentes, as pessoas são iguais. A gente
se sentiu abraçados."
Pezão ganha R$ 500 e sustenta
um filho de dois anos e os pais. Na
saída, comenta. "Ninguém tem
culpa de nascer rico ou pobre,
mas muitos podem fazer alguma
e não fazem nada."
Júnior, 17, do grupo "Sou da
Paz", estava inconformado com a
partida dos alunos. "Uma semana
não basta", dizia. "Vocês são normais como a gente. Nós temos
certos preconceitos porque eles
têm mais dinheiro que a gente,
mas conhecendo melhor vemos
que esse preconceito não existe.
Espero que vocês façam alguma
coisa por nós. Vou sentir muita
falta dessa convivência."
Evelise, 20, moradora do bairro,
pede que alguém da Escola Waldorf conte a rotina de um dia.
"Depois das aulas, vou para o cursinho, dois dias à tarde tenho inglês, janto, depois faço as lições e
estudo", relata Ricardo. Uma garota na roda comenta: "Mas é só
isso que vocês fazem?"
Bruna relata que é quem acorda
as irmãs. "A gente faz rodízio,
uma arruma a casa, outra faz o almoço, outra lava a louça."
Evelise, que passou a semana
em contato com o grupo, conta
que no início havia uma distância.
"Depois a gente foi vendo que eles
são normais, são como a gente,
brincam como a gente brinca,
riem como a gente ri."
Os adolescentes do bairro querem saber se haverá uma troca,
eles passando uma semana na Vila Olímpia, participando das atividades. Fabiana diz que essa é uma
idéia para ser amadurecida.
Ferreira, monitor da creche, defende a idéia. "Para muita gente
aqui, existem duas São Paulo. A
nossa acaba na M"Boi Mirim."
É quase meia noite e os ônibus
pelas ruas pouco iluminadas viajam em comboios. Ao longo dos
dez quilômetros da M'Boi Mirim,
além de postos fixos da PM, só
cruzam com uma viatura policial.
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