São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 2008 |
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A FAVOR Vida e anencefalia
SAMANTHA BUGLIONE ESPECIAL PARA A FOLHA A "proteção à vida" parece ser uma obviedade. Talvez por isso não nos preocupamos em entender o que significa essa expressão e acabamos minimizando a falta de consenso sobre seu sentido. A vida é protegida, mas não entendemos que vida é essa. A pergunta incômoda que me atrevo a fazer sobre a "morte" de Marcela de Jesus Ferreira, que na gestação foi diagnosticada com anencefalia (o mais preciso é meroanencefalia, por ter um encéfalo rudimentar em função da acrania) e teve uma sobrevida de um ano e oito meses, é se ela já não estaria morta. Por certo essa pergunta não faz o menor sentido para muitas pessoas. Afinal, há fotos de um corpo gordinho e a figura de uma mãe e de um pai amorosos. A inclinação é por dizer que Marcela estava viva, que merecia viver e que todos os bebês na mesma condição têm direito à vida. Quando falamos em vida é preciso explicitar ao que nos referimos, pois a palavra é polissêmica: há a vida orgânica, a vida psicológica, a vida simbólica. Por isso cabe perguntar qual delas Marcela viveu? E, para além disso, qual é a vida que nos torna sujeitos de direito e deve ser protegida por um Estado democrático? Marcela tinha uma anomalia congênita que lhe tirava as condições de ser pessoa, de interpretar o mundo, de estabelecer uma vida de relações. Para ela, havia uma morte anunciada e o tempo de vida de seu corpo foi a exceção que comprova o quanto a morte do corpo vazio é iminente, porque a pessoa, o simbólico e o psicológico não chegaram a existir. A loteria da natureza que provoca o não-fechamento do tubo neural de um feto acaba por impedir o desenvolvimento natural do cérebro e de todas as suas funções. Essa era a condição de Marcela. Uma condição trágica que impõe indagações. Será essa vida um direito absoluto? O sofrimento da mãe não deve ser considerado? A realidade da morte de quem ainda não nasceu e o debate político sobre ela evidenciam o quanto o corpo tornou-se objeto de discussão. Tal corpo é o novo ser político, que se torna o sujeito de direitos, e sua existência, mesmo que apenas orgânica, passa a ser inviolável. Como conseqüência à mãe frustrada é legado o silêncio, devendo suportar, resignada, a gestação de uma criança que não virá a ser. Compreender a vida implica em reconhecer a sua dupla dimensão: a do ser que vive, ou seja, a vida política (a bios), e a vida orgânica (a zoe). A vida tutelada pelo Direito é a do ser que tem condições de viver a bios. O crime de aborto pressupõe feto vivo, e o feto anencéfalo, em conceito e conseqüência, equipara-se a alguém com morte cerebral. Do ponto de vista das questões políticas fundamentais, não há vida tutelada. Para a sociedade brasileira está posto o desafio de deixar de conceber a vida como mero objeto de disputas morais, pois é no respeito à liberdade que a vida poderá ser, efetivamente, protegida. Obrigar mulheres a sustentar a gestação de um feto anencéfalo é prática institucionalizada de tortura, já que a criança, com vida simbólica e psicológica, não existirá. A questão que precisamos observar é que, se por um lado somos capazes de respeitar o amor da mãe de Marcela, por outro também devemos ser capazes de respeitar o luto das mães que querem viver sua dor. Esse luto anunciado é um direito, que implica a possibilidade de escolher o momento em que ele irá começar. Samantha Buglione, 32, é doutora em Ciências Humanas pela UFSC, professora de Direito e Bioética na Univali e Cesusc, em Santa Catarina, e coordenadora do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e do Instituto Antígona. Sua tese de doutorado foi sobre anencefalia e patentes de seres vivos.
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