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HABITAÇÃO
Em SP, participação em atividades coletivas e obediência a regras contam como "milhagem" para candidatos a moradia
Sem-teto disputa "pontos" para obter casa
ALENCAR IZIDORO
CHICO DE GOIS
DA REPORTAGEM LOCAL
O segurança Marcos Evangelista Mendes, 34, está desempregado
há 15 dias, mas não pára de trabalhar dentro do prédio da avenida
Ipiranga, antiga sede do hotel
Terminus, no centro de São Paulo, que ele ocupou com um grupo
de 800 sem-teto quase uma semana atrás. Ele integra a equipe de
vigilância, responsável por manter a ordem, mas também faz
questão de ajudar as grávidas a
subir escadas e de perguntar para
a cozinheira se ela quer algo. Se
deixarem, dá uma força até na recreação das crianças.
É quase uma lua-de-mel para
ele, que se casou oficialmente em
31 de maio. Sua mulher, Fabiana
Dias do Val, 28, é uma das que esperam bebê. "Todos ajudam, todos são unidos", diz Mendes, que,
sem ter onde morar, fez sua "estréia" em invasões.
A vontade de ajudar do segurança não é uma exceção entre os
que participaram da "tomada" de
quatro prédios do centro organizada por líderes do MSTC (Movimento dos Sem-Teto do Centro),
na maior ação de grupos do setor
na capital paulista nos últimos 14
meses. A razão para tanta disposição é que a disputa por um teto
ainda está longe de acabar.
Mesmo se forem vitoriosos nas
invasões, na resistência às reintegrações de posse e nas negociações para obter financiamentos
dos governos, os sem-teto sabem
que não haverá vagas para os
3.100 que ajudaram a abrir as portas de quatro imóveis (um deles já
havia sido desocupado na última
quinta-feira), a enfrentar a Polícia
Militar e a organizar os edifícios.
No prédio da avenida Ipiranga,
por exemplo, havia 86 dormitórios e 800 invasores -que ainda
estavam sob ameaça de despejo,
já que a reintegração de posse foi
decretada anteontem. No da rua
Mauá, antiga sede do hotel Santos
Dumont, eram 1.200 sem-teto e
204 quartos.
Por enquanto, eles se amontoam. O critério para definir
quem ficará lá, porém, vai depender do prontuário das famílias:
quem dá a contribuição mensal
de R$ 3 ganha um ponto; pela presença em cada reunião, mais um;
pela atuação nas comissões de
trabalho, mais um; pela participação em cada ato, três pontos.
A seleção final é feita com base
nas pontuações, que são anotadas
por líderes diariamente nas fichas
familiares. Quem ficar de fora terá
que esperar a próxima vez.
Organização
"Os que estiverem acomodados
e não pensarem na coletividade
não ganham espaço. Essa também é uma forma de evitar privilégios", diz Ivaneti de Araújo, 30,
coordenadora-geral do MSTC.
O esquema de pontuações é um
exemplo do nível de organização
do movimento, atribuído principalmente à presença das mulheres. Elas são maioria entre os participantes -ao lado das crianças,
somam 75%, segundo Araújo- e
dominam a liderança.
Na 1ª coordenação do MSTC,
também chamada de "executiva",
há nove integrantes: oito mulheres e um homem. Na 2ª coordenação, conhecida por "ampliada",
são 14 mulheres e quatro homens.
O regimento oficial, escrito e
conduzido por elas, é rígido e não
há margem para indisciplina. A
organização começa pela divisão
de tarefas: há equipes de recepção, cozinha, limpeza, manutenção e segurança -com rondas e
plantões noturnos em cada andar.
Há horário para tudo. Das 22h
às 6h não é permitido fazer barulho nem sair dos prédios. Na portaria, aliás, passa somente quem
portar as carteirinhas com fotografia e, em alguns casos, os sem-teto chegam a ser revistados.
O regulamento proíbe a entrada
de armas, drogas e bebidas alcoólicas -na quarta-feira, dois invasores foram expulsos do prédio
da rua Mauá por embriaguez. O
texto sobre as regras ordena a preservação do patrimônio e não
permite agressões físicas e ofensas, "especialmente espancamento de mulheres e crianças".
O descumprimento das normas
pode levar a três punições: advertência, reparo do dano causado
ou expulsão do edifício. Elas são
votadas nas assembléias, cuja presença é, mais do que estimulada,
obrigatória: três faltas consecutivas podem levar à perda do direito de ficar no prédio.
Mulheres
As explicações para a presença
maciça de mulheres entre os sem-teto são diversas. Começam pelas
estatísticas, que mostram um
avanço do sexo feminino comandando as casas. O percentual de
mulheres chefes de família passou
de 18,1%, em 1991, para 24,9%, em
2000, segundo dados do IBGE.
Em contrapartida, as taxas de desemprego para elas chegam a ser
mais de duas vezes a média.
Também não são raros os casos
de mulheres casadas que participam das invasões mesmo sem serem apoiadas por seus maridos.
"A luta começa dentro de casa.
Meu marido prefere morar de favor do que me acompanhar",
conta Darci Salles, 59, que, desempregada e sem dinheiro para
alugar uma casa, participou da
ocupação na rua Aurora junto
com a filha de 16 anos.
"As mulheres são mais engajadas", afirma Lisete Gomes, 36,
uma das coordenadoras do
MSTC. O marido dela não participa do movimento, mas mora com
ela dentro de uma antiga ocupação da rua Ana Cintra. "Ele tem
medo da polícia", diz ela.
A líder do MSTC Ednalva Franco, 30, é mais radical. "As mulheres são mais determinadas. Se eu
dependesse do meu marido, estaria na rua", diz ela, que mora com
ele e os dois filhos em uma ocupação da rua Brigadeiro Tobias.
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