|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
SP 450
Cineasta refaz roteiro que o levava, de bicicleta, às dezenas de
salas de cinema que existiam nas ruas da cidade e conta como
aconteceu a evolução da arte de fazer filmes em São Paulo
A cidade como cenário e personagem
CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Descendo rua abaixo em
sua bicicleta, o adolescente Carlos Reichenbach está
indo assistir uma chanchada num dos cines espalhados pelos bairros da
cidade. Larga seu veículo
no saguão do cinema, sem
muita preocupação. Estamos no final dos anos 50, e
há bem menos assaltos e
bem mais salas de exibição em
São Paulo fora dos shoppings.
"Lembro do cine Universo, no
Brás, cujo teto abria nas noites de
lua cheia. Do cine Piratininga, o
mais comprido da América Latina. Do cine Maringá, no Jabaquara, que virou salão de baile. Do cine Maracanã, na Vila Maria. O cinema era um estímulo para conhecer outras plagas", diz Reichenbach. "Hoje nem há tantos
cinemas na rua nem dá para andar de bicicleta, porque falta respeito ao pedestre e ao ciclista..."
Nascido em Porto Alegre por
acaso, durante uma temporada
que seus pais, um paulista e uma
estoniana, passaram por lá, Reichenbach é paulistano desde os
quatro meses de idade. Até os 11
anos, viveu no Jardim América,
numa casa que hoje pertence ao
também diretor e produtor de cinema Anibal Massaini Neto, e
que, na infância de Carlão, era conhecida como "a casa do puma".
Isso porque o pai do cineasta tinha como hobby criar animais
selvagens: além do tal puma, havia ainda um casal de tamanduás
na casa de campo, às margens da
represa Billings, chamados Pinga
e Conhaque. E um urubu-rei de
nome Jacó, doado ao zoológico.
"Era engraçado, porque para
mim a Billings nessa época representava o término da cidade. O Jabaquara, onde passei a adolescência, era considerado periferia.
Mas outro dia, uns documentaristas holandeses me pediram para
levá-los onde São Paulo acabava e
me dei conta de que não acaba
nunca", diz o cineasta.
Esse "crescimento degenerado" da cidade aparece em filmes como "Anjos do Arrabalde" (1987) e
"Amor, Palavra Prostituta" (1982). "Em
pouco tempo, um
bairro proletário
se transforma
num manancial
de especulação
imobiliária. Os
pobres são cada
vez mais empurrados para a
periferia", afirma.
Há mais de 40
anos morador de
Higienópolis,
Reichenbach dá
continuidade ao
amor do pai pelos
animais: aprendeu
com o cronista Rubem
Braga a plantar bocas-de-leão na varanda do apartamento para atrair passarinhos, e
fica todo prosa ao contar que um
dia surpreendeu duas maritacas
pousadas sobre o computador.
Os longos passeios de bicicleta a
partir do Jabaquara foram uma
influência decisiva na escolha de
São Paulo como "personagem absoluta" de seus filmes. "Meus
amigos me chamavam de "noivo
da cidade", por causa do prazer da
prospecção que veio com o ciclismo." Mas optou por uma visão
"de baixo": os proletários são o
foco, como as "Garotas do ABC"
de seu mais novo filme, com estréia prevista para março.
Em "Filme Demência" (1986),
literalmente de baixo: filmou do
chão, em um carro conversível, a
fuga de São Paulo do personagem
principal, Fausto (Ênio Gonçalves), como contraponto à filmagem de helicóptero da fuga de
Carlos (Walmor Chagas), em
"São Paulo S/A" (1965), de Luís
Sérgio Person (1936-1976), a
quem considera responsável por
seu ingresso no cinema. ""Filme
Demência" é minha resposta a
"São Paulo S/A", uma leitura às
avessas do filme. Mostra uma relação de amor e ódio profunda
com a cidade, exatamente como a
que eu sempre tive", diz.
Person foi um dos professores
de Carlão na Escola Superior de
Cinema São Luís, uma das primeiras instituições de nível universitário do país dedicadas à arte
cinematográfica, que ficava ao lado da igreja pertencente ao colégio homônimo, na rua Haddock
Lobo, esquina com a av. Paulista.
Entre os mestres, estava também
Paulo Emílio Salles Gomes, que
introduziria Reichenbach a outra
paixão, o anarquismo.
Ali, segundo o cineasta,
é que teria nascido o chamado cinema "Boca-do-Lixo", e não no centro da
cidade, como se costuma
dizer. A escola acabou
por atrair não só alunos,
como interessados em cinema: circulavam na faculdade, e nos "anexos"
bares Ponto 4 e Riviera,
na Consolação, nomes
como José Mojica Marins
e Rogério Sganzerla.
O centro já exercia sua atração
sobre os cinéfilos com a sala de
exibição da Sociedade Amigos da
Cinemateca, na rua Sete de Abril,
e ainda mais com o bar que ficava
em frente, o Costa do Sol. Como
as distribuidoras estavam localizadas nas proximidades das estações (Luz, rodoviária, Roosevelt e
Sorocabana), logo a onda marginal se transferiu da região da Paulista para o bar Soberano, na rua
do Triunfo.
"Amizades se fizeram e se desfizeram no bar Soberano e no Paribar, na galeria Metrópole. O eixo
intelectual era ali, embora na época fosse preferível ter a mãe xingada do que ser chamado de intelectual", ri Reichenbach, que, de todos os termos designados para o
cinema que era feito no período
(marginal, Boca-do-Lixo/Boca-do-Luxo, Údi-Grúdi), prefere
"pós-Cinema Novo".
No auge da pornochanchada,
nos anos 70 e 80, atuou prolificamente como diretor de fotografia,
apesar de aceitar nomear com essa designação apenas dois filmes
seus como diretor de fato: "A Ilha
dos Prazeres Proibidos" (1979) e
"O Império do Desejo" (1981).
Mesmo assim, diz que ambos
possuem conceitos políticos subliminares, despercebidos pelos
censores do regime militar e pelo
produtor, Antônio Galante.
"No meio de "Império do Desejo", eu havia colocado a frase "A
Propriedade é um roubo", e o Galante me chamou para dar uma
bronca, perguntando se tinha
usado o dinheiro dele para fazer
um filme marxista. Eu falei: "Mas
isso é Proudhon". E o Galante:
"Ah, então tá bom'", diverte-se. O
anarquista francês Pierre-Joseph
Proudhon (1809-1865) é um dos
ídolos de Reichenbach.
Já como diretor de fotografia fez
até um filme pornográfico, que
não assinou. "Confesso que me
senti um açougueiro. Mas foi uma
bobagem não assinar, porque a
fotografia é muito bem-feita." Em
alguns filmes, por considerar a fotografia aquém da direção, preferiu usar o pseudônimo Alfredo
Stinn. "Como fotógrafo fui uma
vagabunda", brinca.
Texto Anterior: Mortes Próximo Texto: Metrópole é o ""monstro" que domina a tela Índice
|