|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RECICLAGEM URBANA
Reabertura de galeria com cinemas e teatro reacende discussão sobre a vocação do centro de São Paulo
Centrão muda, mas não recupera glamour
FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL
Paixões tórridas entre estrelados artistas brasileiros deram lugar a uma loja de água engarrafada e uma fábrica de salgadinhos.
Clássicos da MPB agora soam como calçados à venda. E a boate
que já foi um dos maiores inferninhos da noite paulistana nos anos
60 está perdida numa galeria lotada de agências de turismo.
A São Paulo que nunca pára se
recicla constantemente. Na próxima terça-feira será reaberta a Galeria Olido, na avenida São João.
O degradado edifício terá agora
três cinemas, teatro e laboratórios
de artes gráficas e digitais -uma
nova iniciativa cultural para a revitalização da área central.
Mas o que aconteceu com os
palcos das paixões e noitadas que
marcaram a geração boêmia da
cidade dos anos 50 e 60, a primeira a invadir o centro madrugada
adentro?
A maioria das casas continua de
pé, mas pouco resta dos bares,
restaurantes e salas de espetáculo
que abrigavam a intelectualidade
e a vida artística da metrópole que
estava sendo erguida.
Hoje, há no "centrão" uma São
Paulo ambígua: a decadente
-com as ruas sujas e violentas-
e a que floresce em meio ao caos,
com centros culturais moderníssimos, como a reformada Pinacoteca, a Sala São Paulo, o Centro
Cultural Banco do Brasil e o novo
Mercado Municipal.
Enquanto urbanistas divergem
sobre a eficácia dos novos empreendimentos culturais para o
revigoramento da região, a Folha percorreu o roteiro boêmio e entrevistou
artistas que viveram aqueles anos.
Nessa regressão, colocou o "centrão" no divã.
"Foi um tempo deslumbrante.
Tudo estava para ser feito e todos
mostravam uma energia inesgotável", diz a atriz Fernanda Montenegro, que se destacou logo nos
primeiros anos do TBC, o Teatro
Brasileiro de Comédia, meca dos
atores brasileiros na época em
que São Paulo comemorava seus
400 anos e tinha pouco mais de 2
milhões de habitantes.
Litros de uísque
Ao lado do TBC havia um pequeno bar chamado Nick. Tinha
um piano, um pianista que sempre acabava a noite bêbado e um
picadinho de carne que ninguém
esquece. E uma portinha lateral
que dava passagem para o teatro.
Foi o suficiente para virar o
ponto de encontro de atores, diretores e músicos. "Era o ninho da
aristocracia teatral, com o que isso tem de bom e de ruim. Muita
gente que freqüentava tinha
idéias pseudo-hollywoodianas",
alfineta Montenegro.
Refúgio de atores iniciantes em
busca de fama, o Nick também foi
palco de amores dos já famosos.
Casado com a "primeira-atriz" do
TBC, Cacilda Becker, o diretor
Adolfo Celi se apaixonou por outra mulher. Era a atriz Tônia Carrero, com quem se casou meses
depois.
"Tinha tanto artista junto que as
paixões se intercambiavam", conta o ator Raul Cortez, que hoje raramente vai ao centro da cidade
de noite. No número 305 da rua
Major Diogo não há nem sinal do
Nick. Nesse endereço funciona
uma fábrica de salgadinhos.
A poucas quadras dali, na frente
de uma distribuidora de água engarrafada, na rua Martinho Prado, o contrabaixista Sabá olha para seu instrumento. Melancólico,
o músico que acompanhou Elis
Regina, Johnny Alf e Dick Farney
fala das madrugadas do Baiuca.
"Depois de tocar toda a madrugada, os músicos se reuniam num
banco de jardim na praça da República." Foi lá ele que conheceu
os futuros parceiros do Jongo
Trio, que em 1964 acompanhariam Elis Regina e Jair Rodrigues
no show "Dois na Bossa", que catapultou a cantora gaúcha à fama.
Sabá, nascido Sebastião Oliveira
da Paz, acompanhou a Folha nesse roteiro boêmio até a Galeria
Metrópole, atrás da Biblioteca
Municipal Mário de Andrade. Depois de quase 50 anos, voltou ao
lugar onde funcionava o Le Club,
um dos inferninhos mais disputados por músicos e jovens. Foi lá,
por exemplo, que Plínio Marcos
exibiu suas primeiras peças.
Hoje, só o jardim continua
igual. Os três andares estão agora
preenchidos por lanchonetes e
agências de turismo. "Acabou o
charme da região. Você acha que
alguém viria aqui para se divertir?", pergunta Sabá.
Dobrando a esquina, na praça
Dom José Gaspar, ficava outro
ponto concorrido, o Paribar. Então uma casa de perfil parisiense,
misto de restaurante e café com
diversas mesinhas na calçada, hoje abriga uma loja popular de artigos de couro.
A trajetória do jornalista e escritor Ruy Castro, que investigou a
boemia carioca e paulistana no livro "Chega de Saudade", é exemplar da transformação da região.
"Quando cheguei em São Paulo,
em 1979, a época de ouro do centrão já não existia, estava morta. O
quente era a área dos Jardins, a
zona sul", lembra.
A decadência veio aos poucos.
O inchaço populacional da cidade
e a expansão da mancha urbana
para os bairros e para a periferia
diluíram a concentração de atividades. O aumento do preço dos
aluguéis também afugentou moradores.
O Clubinho dos Artistas, inferninho que funcionava no porão
do Edifício Esther, na esquina da
avenida Ipiranga com a Sete de
Abril, é reflexo dessa transformação. Fundado pelo artista plástico
Olavo de Carvalho, reunia arquitetos, advogados, jornalistas e
boêmios de todo quilate.
No salão outrora freqüentado
pelos pintores Lasar Segall, Manabu Mabe e Di Cavalcanti e pelo
historiador Sérgio Buarque de
Holanda, há hoje, em meio à fauna urbana, executivos engravatados e garotas de programa.
Nos anos 70, a região central
sentia a mudança da clientela. A
área conhecida como "Boca do
Lixo", nas proximidades da Estação da Luz, era freqüentada por
atores e atrizes desempregados
em busca de uma ponta numa das
pornochanchadas que lotavam os
cinemas brasileiros. Os teatros
mudaram-se para os Jardins, na
zona sul, e logo foram seguidos
pelos bares e restaurantes.
Para o diretor teatral Maurice
Vaneau, um belga que adotou São
Paulo como seu lar, a cidade nunca mais foi a mesma. "Não havia
uma procura pelo luxo e conforto,
como ocorre hoje. Quem vinha
para o centro buscava uma experiência intelectual. Agora, precisa
rodar os bairros para encontrar."
O ator Walmor Chagas, que recentemente trocou São Paulo por
um sítio na Serra da Mantiqueira,
afirma que a identidade cultural
da cidade mudou. "Não há mais
volta. A vida cultural noturna que
acontecia nos bares nos anos 60 se
profissionalizou. A cidade precisa
de novos pólos e não viver apenas
do passado."
Texto Anterior: Há 50 anos: França discute defesa européia Próximo Texto: Para urbanistas, região precisa de moradores Índice
|