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NAS RUAS
Esconder-se em buraco de viaduto, não revelar o nome ou marcar casas que fazem doações são algumas das táticas adotadas
Excluído revela estratégia de sobrevivência
LAURA CAPRIGLIONE
DA REPORTAGEM LOCAL
Pedro, 20, abre um sorriso bonito e largo, quase infantil, para falar de sua "casa", um buraco no
alto do viaduto Glicério. "Teto, eu
tenho muito, um viaduto inteiro.
Falta só o chão."
Em época de medo e assassinatos em série de moradores de rua
(seis vítimas fatais até a última
sexta-feira), a moradia de Pedro,
Kelly, André e Ana Paula é exemplo de estratégia de sobrevivência.
A velha escada de madeira com
14 degraus dá acesso ao esconderijo. Quando os habitantes do buraco se alojam, recolhe-se a escada e, pronto, os quatro estão a sete
metros inacessíveis do chão. Flutuam a salvo, dentro da barriga do
monstrengo de concreto.
O lugar é quentinho. Cimento e
armações de aço acumulam o calor do sol durante o dia. À noite,
difundem a energia para dentro
do buraco dos quatro jovens amigos. Também tem o leve balanço
da estrutura (quando passa um
carro mais pesado, sente-se o
chão descer e subir).
"É bom para dormir", diz Pedro, a quem o barulho da pista de
rolamento, dois metros acima da
cabeça, não incomoda. "Quem
mora na rua tem ouvidos calejados", explica o rapaz.
Nome e sobrenome
Um entre os 10 mil moradores
de rua de São Paulo, Pedro está
longe do perfil médio da categoria: "Põe aí que eu sou um homem
feliz", exige. Já é uma diferença.
Outra: Pedro tem família estruturada em Sorocaba (100 km de São
Paulo). Não mora com ela porque
quer "ser livre". "Eu não agüentava todo mundo me cobrando."
Pedro não bebe, não usa crack
("o diabo em forma de fumaça",
explica aos gritos um usuário).
Tem namorada (metade dos moradores de rua vive sozinho). É
voluntário na "Associação Minha
Rua, Minha Casa", uma ONG de
ajuda aos moradores de rua do
centro de São Paulo. Deixa-se fotografar e apresenta-se com o nome completo: Pedro Henrique de
Noronha Braga.
Aí tem uma enorme distinção.
A população de rua odeia ser
identificada. Freqüentemente,
usa nomes falsos. É outra estratégia de sobrevivência.
Maria, 28, não quer ser fotografada e tampouco autoriza a divulgação de seu nome. A mãe, em
Ilhéus, não sabe que a filha vive na
rua. "Ela morreria de tristeza."
A invisibilidade também ajuda
quando tem de recorrer aos albergues públicos, que não gostam de
moradores de rua renitentes. "Digo que perdi meus documentos,
invento um nome e me transformo em outra pessoa, entrando
pela primeira vez na instituição."
Maria tem dois filhos, Lúcia, de
um ano e nove meses, e Ricardo,
8, matriculado na segunda série
do CEU de Perus, na zona norte
da capital. A pequenininha, ela
quase perdeu.
Grávida, Maria entrou em trabalho de parto. Foi levada a três
hospitais. Despacharam-na de
volta ao mocó depois da prescrição de Buscopan. Sozinha, ela deu
à luz Lúcia. O PM que lhe ouviu os
gritos chegou a tempo de cortar o
cordão umbilical e aspirar dos
pulmões da menina os restos de
placenta. "Mais um pouco e ela
morreria", lembra a mãe.
O marido, dependente de crack,
é Maria quem arrasta todo dia para o trabalho de recolher caixas de
frutas que depois são revendidas
no mercado municipal. "Dá para
tirar entre R$ 50 e R$ 100 por semana." É raro a família não conseguir faturar pelo menos um salário mínimo no mês. "Mas, muitas vezes, acaba tudo nas mãos do
traficante", explica.
Evangélica, Maria organiza a vida dos 17 moradores de rua que se
agrupam atrás do Mercado Municipal. Ela e os 11 homens catam
caixas. As cinco outras mulheres
se prostituem no largo do Arouche. Todos, menos Maria, são dependentes de crack. "Mas ninguém fuma na frente das crianças,
não. Eu não deixo."
Por causa dos assassinatos dos
últimos dias, Maria agora tem um
trabalho extra: organizar homens
para cumprir, em grupos de três,
turnos de vigilância de três horas
cada. Cabe a ela acordar os vigias
da vez. Na quarta-feira, Maria estava furiosa com seus comandados. Bêbados demais, eram incapazes de "distinguir um cachorro
de um assassino", disse.
A comida vem de doações. Todas as terças, quartas e quintas-feiras, passa a Kombi de um grupo religioso diferente, que ajuda
com mantimentos, sopa ou refeições embaladas em quentinhas.
A água é comprada em galões
de cinco litros. Maria toma banho
e lava Lúcia e Ricardo com três galões, um prodígio quando se considera que, na média, cada habitante da cidade consome por dia
74 litros de água para se banhar.
Grupos de apoio
São inúmeros os grupos de ajuda à população de rua, além do
trabalho da Secretaria Municipal
de Assistência Social. Calcula-se
que São Paulo conte hoje com
2.100 pessoas, entre contratados e
voluntários, para cuidar, providenciar banho, alimentar, educar,
profissionalizar ou simplesmente
entreter a população de rua.
Nos baixos do viaduto do Glicério funciona um desses grupos. O
barulho dos carros quase abafa os
alto-falantes que tocam Beatles
enquanto chegam homens e mulheres de rua para o almoço.
Em um canto, cadeiras e mesas
estão dispostas para quem quiser
ler os jornais do dia. Em outro,
grupos jogam dominó, damas e
xadrez. Numa mesa, recolhem-se
as inscrições para o banho, atividade das mais concorridas.
"Ficar próximo do centro da cidade [onde está o lixo mais rico] e
dessa rede de solidariedade é sabedoria", explica a freira Ivete de
Jesus, 61, há 29 anos trabalhando
com populações de rua.
Nos bairros, a vida é mais difícil
e os moradores de rua têm de se
valer de códigos próprios, como
marcar as casas que lhes dão comida ou roupas com um "X" na
campainha. Outros que passarem
pelo local já saberão: quem pedir,
lá receberá.
Durante anos, sempre no período da Quaresma e em dezembro,
irmã Ivete fez questão de viver
com os moradores de rua, para
melhor entendê-los. Seu depoimento é instrutivo a respeito dos
limites do assistencialismo:
"Quando se está deitado ou sentado no chão, você vê a cidade de
uma outra perspectiva. Vem a
mocinha, vê você com frio, fica
com pena e dá a blusa de lã que está vestindo. Você agradece com
um "Deus lhe pague". Mas amanhã, se fizer sol, a roupa vai para o
lixo. Quem mora na rua não tem
guarda-roupa."
A população é generosa, dá comida e roupas, o governo municipal equipa os abrigos e albergues,
já não se aceita chamar os moradores de rua de "mendigos", pelo
teor negativo da palavra, associada à vadiagem. Mas não se resolve
o problema. Antes, ele se agrava.
Em 1994, eram 8.000 os moradores de rua. Dez anos depois, esse contingente aumentou 25%,
contra um crescimento populacional, no mesmo período, de 2%.
A demografia ascendente ainda
tem complicadores.
O presidente da "Associação
Minha Rua, Minha Casa", Cláudio Elias Conz, calcula que 30%
dos moradores de rua estão nessa
circunstância por distúrbios psiquiátricos, alcoolismo ou dependência de drogas. Algo como 60%
são desempregados. Apenas 10%
faz da rua um estilo.
Os primeiros exigem tratamento. Os segundos, uma chance. Aos
terceiros bastam latinhas, papelão
e ferro velho para catar, "porque
esse também é um trabalho digno", lembra Pedro.
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