São Paulo, domingo, 29 de setembro de 2002

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DANUZA LEÃO

Famílias antigas

E m toda família que se preza existe um louco. Por louco leia-se aquele (ou aquela) que pensa por si mesmo, diz o que lhe dá na telha -geralmente verdades- e conta as histórias escabrosas que existem em todas as famílias que se prezam; aquelas que os que seguem as regras estabelecidas levam para o túmulo. Uma pena, aliás, pois elas costumam ser ótimas.
Quem não teve uma tia-avó ou bisavó que largou marido e filhos para fugir com um soldado? Ou um primo longínquo que deu um desfalque e sumiu levando o dinheiro que era da família e nunca mais foram vistos, nem ele nem o dinheiro? Até mesmo os mais prejudicados ficaram (e morreram) calados, para preservar a família do escândalo. Ah, o escândalo; ah, que tempos esses, em que uma moça solteira que não fosse mais virgem era apontada na rua como a vergonha da família.
Os loucos falavam tudo, mas só para os que queriam ouvir, que aliás eram poucos. Eles eram os únicos que aceitavam tudo como normal e diziam, com todas as letras, que a prima querida, que não saía da igreja, estava torcendo para que a mãe -rica- morresse logo para poder sair como uma desvairada pelo mundo; eles também sabiam quem traía a mulher, quem bebia, e olhavam -com um sorriso desafiador- quando aquele tio velho botava a sobrinha de nove anos no colo e passava carinhosamente a mão na sua coxa. "Como ele é carinhoso", diziam. Como ele é tarado, pensava o louco.
Como eram loucos, não tinham ambição nem apego às coisas materiais, e consequentemente nunca davam pra nada: não conseguiam estudar nem arranjar emprego, os anos se passavam e eles continuavam morando na casa da mãe, tirando dela o dinheirinho para uma cerveja com os amigos.
Naquele tempo mulher tinha que casar, e quando a sobrinha mais querida arranjou um pretendente rico a família ficou em êxtase; menos ele, que era o único que sabia que ela gostava de outro, um outro que não ia dar para nada na vida a não ser para fazê-la feliz (pelo menos por uns tempos).
O rico não tinha nenhuma graça, mas sua torcida era de fé; apesar do namoro estar ainda na fase preliminar, na casa só se falava da festa de noivado, do vestido de casamento, das damas de honra, da decoração da igreja, do tipo de convites, essas coisas que fazem as mães perderem a cabeça.
A mais interessada se torturava; afinal, se os pais, que ela respeitava tanto, achavam que ele era um bom rapaz, nem lhe ocorria pensar no que a esperava: deitar com ele todas as noites na mesma cama e passar com ele o resto da vida -sim, porque naquele tempo os casais não costumavam se separar. O tio louco era o único que percebia tudo, e uma tarde se sentou perto dela puxando conversa; papo vai, papo vem, ela conseguiu raciocinar.
Descobriu que preferia morrer a se casar com aquele homem e o tio deu a maior força; só ele.
Foi uma grande confusão: ela teve coragem para romper com o rico mas não ficou com o outro. Nunca se casou, e virou a louca da geração seguinte.
O tempo passou, ela viu os sobrinhos e as sobrinhas crescerem, as famílias continuarem empolgadas com as cerimônias dos casamentos, mas uma coisa nunca conseguiu entender: por que as mães, que desejam mais que tudo no mundo a felicidade de suas filhas, são sempre a favor de um casamento com um homem rico -mesmo que ele seja bobo, feio, sem graça, sem nada.
É bem verdade que existem algumas, raras, que são a favor do amor.
Mas essas são consideradas loucas.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br


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