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GILBERTO DIMENSTEIN
O inferno do Carandiru vai ao paraíso? Talvez
Filme brasileiro mais
aguardado do ano, "Carandiru", de Hector Babenco, perdeu
seu cenário real com a desativação do presídio. Mas o cenário
imaginário continua. Aquele
amontado de pavilhões tornou-se
um símbolo da degradação e da
marginalidade não só de São
Paulo mas de todo o país.
O que vou escrever agora vai fazer muitos dos leitores rirem ou
debocharem desta coluna: o Carandiru tanto se presta a ser a síntese do pior que somos como também se habilita a virar a síntese
do que melhor podemos ser.
Tivemos de chegar a um consenso sobre como se deveria enfrentar a inflação e, depois disso, ela
despencou. Está em construção,
neste momento, o consenso para
enfrentar a delinquência.
A lição do passado já é conhecida. Está, por exemplo, no filme
"Pixote", também de Babenco,
que conta o que acontece quando
não investimos na educação de
crianças e adolescentes. Se os "pixotes" não morrem na rua (no
caso, o personagem viveu, mas o
ator morreu, vítima da polícia),
acabam em algum Carandiru.
Mas a lição do futuro também
está ali: ao se transformar, como
está previsto, num centro educacional para jovens, o Carandiru
revela o único mecanismo viável
de prevenção da delinquência.
A perspectiva do futuro resume-se no fato -de um simbolismo
extraordinário- de que celas viram salas de aula, ou seja, o que
antes prendia agora liberta.
Sinais nítidos desse consenso foram emitidos na semana passada. O governador Geraldo Alckmin (PSDB) lançou um plano de
segurança social que articula os
programas de inclusão dispersos
em suas secretarias. Estabeleceu-se o foco na criança e no adolescente, além de um território geográfico de atuação.
A boa novidade do plano é que
não há nenhuma novidade. Foi
proposto só um modelo integrado
de gestão, o que é o óbvio dos óbvios em qualquer botequim.
Saber se as medidas são boas
não depende do bom-mocismo
das intenções. Ninguém lança um
plano para deixar o pobre mais
pobre. A questão relevante é a gerência -o que, por enquanto, é
uma incógnita. Elogiar as intenções de programas sociais, todos
necessariamente bem-intencionados, é uma bobagem.
O fato inquestionável: projetos
articulados, focados e delimitados funcionam.
Índices de criminalidade estão
caindo mais rapidamente nos
bairros periféricos da cidade de
São Paulo em que existe distribuição de recursos combinada com
contrapartidas educativas -ou
seja, quem recebe o dinheiro tem
de estudar alguma coisa. Os programas são pilotados pela prefeitura, mas nutridos também com
recursos estaduais e federais.
Mais um indício do consenso, a
ministra da Assistência e Promoção Social, Benedita da Silva, revelou na semana passada que estão em andamento estudos para
unificar todas os projetos federais
de renda mínima.
Apesar dos graves problemas de
gerência e da vocação para o
marketing, o Fome Zero tem o
acerto de concepção de colocar
um foco e estabelecer o território
a ser transformado em eixo transversal de políticas públicas. Se Lula tivesse mais pressa, tão alardeada em seus tempos de oposição, não gastaria tempo tentando
criar uma novidade, apenas aceleraria o que já existe. Mas aí já é
outro problema.
Da mesma forma que, depois de
erro em cima de erro, se descobriu
como controlar a inflação, os técnicos desenvolvem modelos para
combater a drenagem de recursos
por falta de foco e falta de encaixe
entre as centenas de milhares de
ações sociais.
Demorou a ser descoberto que,
no combate à miséria, o investimento social sem crescimento não
funciona, como não funciona o
crescimento sem investimento social. Assim como já se sabe que,
sem aquela combinação, polícia
apenas enxuga gelo, mas, sem polícia eficiente, a insegurança não
se dissipa.
O sonho representado pelo Carandiru hoje -a transformação
de celas em salas de aula- é, na
melhor das hipóteses, quase imperceptível. Na verdade, limita-se
basicamente ao mundo das construções teóricas. A realidade é
ainda a bagunça, o desconhecimento de quem faz o que e de
quem recebe até mesmo dentro de
uma simples prefeitura, numa cotidiana "bateção" de cabeças.
O otimismo dessa coluna vem
da convicção de que a construção
de uma visão dominante sobre
determinado problema é o primeiro passo -e está sendo dado.
Mais dia, menos dia, essa construção teórica, dispersa em alguns experimentos, será beneficiada pelo crescimento econômico -sem o qual, mesmo que se
façam os melhores e mais geniais
projetos, só haverá espaço para o
"Carandiru", de Hector Babenco.
PS - Por falar em construção,
existem obras fundamentais na
vida de um indivíduo - vai aqui
um reconhecimento público tardio. Parte da minha inspiração
para fazer reportagens sobre a
violência contra as crianças veio
do impacto que me causou o filme
"Pixote".
E-mail - gdimen@uol.com.br
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