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AMBIANTE
Em dez anos, foram gastos 76% dos recursos do programa de despoluição; patrimônio natural do Rio continua sujo
US$ 699 mi não limpam baía de Guanabara
MARCOS SÁ CORRÊA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Se o Programa de Despoluição
da Baía de Guanabara tivesse feito
tudo o que prometeu dez anos
atrás, certamente haveria hoje no
Rio outros bares como o de Célio
Oliveira. Pelo cronograma da
Agência de Cooperação Internacional do Japão, que entrou com
US$ 251 milhões para seu financiamento, 2003 está marcado como prazo para a pesca em suas
águas "aumentar 100%", a renda
das cinco colônias de pescadores
que vivem em suas margens ultrapassar US$ 390 mil por ano e o
preço dos terrenos em sua orla
disparar, com altas de 8% a 24%.
Mas, com o programa atrasado
quase cinco anos numa década,
Oliveira ainda exerce o monopólio de um ponto turístico que faria
o maior sucesso na zona sul carioca, se ela não estivesse a 50 quilômetros dali. Doze anos atrás, ele
se instalou numa praia de Magé,
entre a ruína de um ancoradouro
do século 19 e o asfalto que chegou neste milênio. De seu balcão,
vê-se o Corcovado e o Pão de
Açúcar ao longe, mas o litoral é
verde, forrado pelos 138,2 km2 do
manguezal de Guapimirim, uma
área de proteção ambiental.
Sendo o mangue um filtro natural, fregueses do bar entram sem a
menor cerimônia no mar cor de
café ralo e comem, nas mesas espalhadas sob amendoeiras na
areia bege, o peixe frito que chega
na rede bem ali em frente. "É um
lugar incrível, cheio de vida", diz a
engenheira Dora Hees Negreiros.
Quando lhe pedem um sinal palpável de que a Guanabara tem remédio, o que ela cita é o pôr-do-sol no bar do Célio, emoldurado
por ilhas que garças e biguás ocupam ao entardecer.
Nem por isso o lugar é um atestado de despoluição. Visto assim
de perto, qual o resultado dos US$
698,8 milhões que até agora foram
desembolsados no programa?
"Para mim, é o lixo", responde
Oliveira. E esclarece: "Antes do
programa, eu catava nesta praia
dez garrafas de plástico por dia.
Agora, cato cem".
Mais lixo, sem dúvida
"O lixo aumentou mesmo", reconhece o vice-governador Luiz
Paulo Conde, que, desde janeiro,
assumiu, como secretário de
Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano, a gestão do projeto no governo Rosinha Garotinho. A baía está cercada por 8,2
milhões de pessoas. E elas geram a
cada 24 horas cerca de 8.000 toneladas de lixo. No mínimo dez toneladas são despejadas diariamente no mar pelos rios, canais e
valões que desembocam nas
praias internas da Guanabara.
Do que os serviços de limpeza
urbana recolhem, 5.500 toneladas
por dia vão para Gramacho, destino de 62% do lixo carioca. Gramacho é um aterro sanitário compartilhado por vários municípios
e está afundando lentamente no
terreno instável do mangue onde
foi construído, na foz do rio Sarapuí, em Duque de Caxias (Baixada Fluminense). Dele, pelas contas de Dora Negreiros, saem "800
mil litros diários de chorume, um
caldo ácido e tóxico que escorre
para a baía".
Ela dirige o Instituto Baía de
Guanabara. É a ONG que mais conhece o programa. Reúne a equipe que o negociou com o governo
japonês e com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). "Éramos dez. Hoje somos 200
especialistas, incluindo 17 Ph.Ds,
além de pescadores e catadores de
caranguejo", afirma. Seu presidente, o arquiteto Manuel Sanches, coordenou durante dois
anos o planejamento e os acordos
internacionais que sustentam a
maioria dos projetos, mas teve
pouco tempo para implantá-los.
Foi exonerado logo na largada pelo governador Leonel Brizola por
ter se recusado a fazer contratos
sem licitação com empreiteiras.
Com sua saída, o programa acabou entregue à Companhia Estadual de Águas e Esgotos, a Cedae,
submergindo numa estatal incapaz de separar água de esgoto em
seus próprios canos, contrariando as cláusulas do projeto. Ali, a
despoluição se dividiu entre uma
sigla impopular, PDBG, e um problema que a população do Rio de
Janeiro conhece até demais. Em
pesquisas de opinião pública,
93,6% dos entrevistados declaram que a baía é muito suja,
46,7% acham que a sujeira vem
do lixo jogado nos rios, 89,6%
gostariam que ela fosse limpa e
92,8% propõem o "controle rigoroso" de resíduos domésticos.
Pelo banho de mar
Mas a Cedae dá a impressão de
que o PDBG nada tem a ver com
isso. "Temo que as pessoas achem
muito chata essa história de despoluir a baía", diz Sanches. Para
aparecer nas manchetes, o programa precisou se confundir, no
verão do ano passado, com o piscinão de Ramos, obra do governo
Garotinho que, ambientalmente,
não passava de um buraco cheio
de cloro numa praia infecta.
Mas, para Sanches, até o equívoco revela o interesse da opinião
pública pelo "maior patrimônio
natural do Rio de Janeiro". Diz
ele: "As pessoas gostaram do piscinão porque querem de volta seu
banho de mar. Um piscinão custa
cerca de US$ 5 milhões. Ou o dobro disso, contando com o preço
da manutenção em dez anos. Para
atender a todo mundo, o Estado
precisaria fazer pelo menos cem
piscinões, que sairiam por US$ 1
bilhão. Por US$ 1 bilhão, seria
possível dar condições de balneabilidade à baía inteira".
"Recursos fabulosos"
Os atrasos transformaram o
PDBG num caso raro de continuidade administrativa no Brasil.
Passou por quatro governos e
acaba de ser prorrogado pelo
quinto. Deveria estar pronto em
1998. A governadora Rosinha Garotinho agora tem US$ 220,1 milhões e pouco mais de um ano para terminá-lo em julho de 2004.
Para cumprir o novo prazo, mais
de US$ 80 milhões terão que sair
dos cofres estaduais. A maior parte do financiamento externo já
saiu e sumiu.
Para atrasar tanto o programa,
somou-se inércia com sofreguidão. Ele esteve quatro meses parado em 2002, hibernando durante
metade do governo de Benedita
da Silva. Antes, Anthony Garotinho usou a publicidade oficial para trombetear que a baía estava
despoluída. Agora, na Assembléia
Legislativa, há uma CPI farejando
o destino dos "recursos fabulosos" enterrados no PDBG.
O deputado Alessandro Calazans, que abriu o inquérito, baseou seu requerimento em três
suspeitas. Acha que muitas obras
do projeto foram integralmente
quitadas com as empreiteiras sem
terem sido executadas, que quilômetros de tubulações foram postos no mapa, mas não debaixo da
terra, e que compras de R$ 98 milhões, para equipar a estação de
tratamento da Alegria, na gestão
Anthony Garotinho, foram fechadas sem licitação.
São denúncias que podem agitar a política fluminense, mas dificilmente mexerão no lodo da
baía, onde quase US$ 600 milhões
do programa estavam reservados
a medidas de saneamento, incluindo um anel de caras e vistosas estações de tratamento, sem
que a baía deixasse de tragar diariamente 340 toneladas de esgoto
"in natura", quatro vezes mais
que o volume de esgoto tratado.
O que aconteceu com as estações? "Até agora, são literalmente
dinheiro lançado no esgoto, porque elas não foram ligadas às redes de coleta, como estava previsto", explica o professor Luiz Edmundo da Costa Leite, da Escola
Politécnica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). A
estação de São Gonçalo, que destruiu um manguezal e foi inaugurada em meados dos anos 90 pelo
governador Marcelo Allencar,
ainda não funciona. Nos morros
cariocas que passaram pelo programa Favela-Bairro, há 28 estações de tratamento. Nenhuma delas está operando.
Favelização crescente
O PDBG bateu no que Costa
Leite chama de "obstáculo estrutural da sociedade". Em outras
palavras, a favelização, que avançou depressa enquanto o programa remanchava. Ele já estudou
muita baía limpa em países ricos e
muita baía suja em países pobres,
mas não conhece um só caso em
que o problema do esgoto doméstico se resolvesse voluntariamente pelos cidadãos. Por quê? "As
pessoas acham que ter água em
casa é interesse delas e se livrar do
esgoto é interesse público", diz.
Onde as cidades crescem sem
controle, um nó técnico estrangula fatalmente os tubos de esgoto. E
a baía de Guanabara tem, à sua
volta, municípios onde até 70%
das construções são irregulares.
Há cerca de 900 favelas na margem oeste, onde fica o município
do Rio de Janeiro e seus subúrbios
da Baixada Fluminense. Do outro
lado -o de Niterói, que é menos
populoso-, municípios como
São Gonçalo e Itaboraí estão inchando mais 3% ao ano.
Nesse cinturão de informalidade, faltam troncos coletores porque o investimento público não
consegue alcançar a urbanização
privada. Quando há troncos, ligá-los às redes de captação é sempre
mais complicado em bairros onde
as ruas são desalinhadas e as casas
já estão erguidas. Se existem redes, caberia aos moradores conectar-se ao sistema, o que eles
não fazem porque isso implica
uma despesa de 300 e tantos reais,
"ou seja, adiar a troca da TV". E,
em casa que tem esgoto, a conta
de água dobra automaticamente.
A favelização pegou o PDBG
desprevenido? Não. Estava prevista em seu estudo básico, um calhamaço de 500 folhas em que o
governo japonês gastou dois anos
e US$ 3 milhões, antes de apadrinhar o projeto. Nele, os técnicos
avisavam, em 1994, que, nos 45
rios da bacia hidrográfica da Guanabara, "a principal causa da poluição da água são as atividades
humanas diárias e a produção industrial". Nessa ordem.
Na baía, eles constataram que a
presença de "contaminantes químicos em peixes e moluscos era
menor do que os valores-padrão
estabelecidos pela Organização
Mundial de Saúde e pela Food
and Drug Administration, dos Estados Unidos". Exagerados mesmo eram o índice dos coliformes
de esgoto e a maré de lixo doméstico, sinais da "influência significativa das atividades humanas".
Sujar é fácil
Dos 16 municípios que formam
esse condomínio de águas, mais
da metade requeria "urgentes
melhoramentos em seus sistemas
de esgotos", recomendava o estudo. E "os problemas ambientais
da baía não poderiam ser discutidos sem falar nas favelas", que nos
anos 80 haviam avançado 40% no
contorno da baía.
Se é difícil limpá-la, sujá-la é
muito fácil. Trata-se de uma baía
rasa, com 5,7 metros de profundidade média. Tem boca estreita, de
1,6 quilômetro de largura, que no
século 16 encantou os colonizadores portugueses em busca de
águas mansas e portos abrigados.
Seu fundo sobe meio centímetro
por ano, pela acumulação de sedimentos que deixaram no leito
uma gosma tóxica com quatro
metros de espessura média.
Carregada de bactérias que consomem todo o oxigênio disponível no mar, paralisando a decomposição de depósitos orgânicos,
ela se estabilizou. Removê-la é
contra-indicado. Levantaria metais pesados, como zinco, mercúrio e cobre, aprisionados na massa de lodo e areia.
O relatório japonês menciona
mais de uma vez o geólogo Elmo
da Silva Amador. Ele é professor
da UFRJ e autor de um livro dedicado ao "belo e produtivo" espelho-d'água que hoje é lustrado
diariamente por sete toneladas de
óleo. "Baía de Guanabara e Ecossistemas Periféricos: Homem e
Natureza" condena tudo o que se
fez com ela desde que, em 1502, o
navegador Pero Lopez de Souza
decretou que toda água encontrada ali era "excelente".
O povoamento esgotou a capacidade de regeneração natural da
baía, segundo Amador, no fim do
Segundo Império, quando o Rio
de Janeiro atingiu 500 mil habitantes. Todo sistema que formava
a Guanabara foi mutilado. Originalmente, tinha 132 km2 de restingas. Sobraram 28 km2. Era filtrado
por 235 km2 de brejos e pântanos.
Restaram 75 km2. Abrigava 101
ilhas. Ficaram 65. Aninhava 118
praias. Perdeu 46 para os aterros.
Das 24 enseadas, sacos e gamboas
que formavam seu litoral de
"guirlandas", 15 sumiram em retificações. Ao todo, ela perdeu
29,1% de sua superfície.
Proteção ambiental
Isso feito, em 1989 a Constituição do Rio de Janeiro declarou-a
"Área de Proteção Ambiental e
Interesse Ecológico Relevante".
Parece um título póstumo, mas
não é. No meio da baía há um vale
submarino com 20 metros de
profundidade média. Lá, a força
das marés renova as águas regularmente. Nesse canal, que vai do
pé do Pão de Açúcar à ilha de Paquetá, o projeto Mamíferos Aquáticos, da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), está, neste
exato momento, trabalhando
com a identificação de golfinhos.
Onde o talvegue acaba, começa
o mar raso de Guapimirim, local
em que Célio Oliveira, "sete dias
por semana, faça sol ou não faça
chuva", vende cerveja e peixe frito. Ali o manguezal está, desde
1984, formalmente protegido por
uma Área de Proteção Ambiental.
Apesar de cercada por 10 mil indústrias e 32 estaleiros, a APA de
Guapimirim mantém com recursos naturais cerca de 2.000 pessoas, vivendo entre canais e sambaquis. A maioria cata caranguejos, como Juarez Osório Cabral,
que nasceu ali mesmo, aos 11 anos
herdou o ofício do pai e, aos 35,
trabalhando 12 horas por dia, pega até 400 crustáceos por semana.
Vendidos na porta de casa a 50
centavos cada caranguejo, eles lhe
dão uma renda mensal de R$ 800.
O chefe da APA, Paulo Camacho,
garante que basta subir de lancha
os braços do manguezal para ver
que, onde a maré não chega, existe uma floresta quase intata, com
árvores de 15 metros, jacarés, capivaras, lontras, borboletas e 172
espécies de pássaros.
A praia é nossa
Mas, onde a maré chega, Célio
Oliveira enfrenta a sujeira como
pode. Pendurou nas árvores em
volta do bar cartazes avisando: "O
lixo é seu, a lixeira é minha, a praia
é nossa". E toca, com adolescentes
pobres da região, um programa
particular de despoluição. Dá aos
meninos lanche, cesta básica, camisetas e prêmios de fim de ano
em troca dos resíduos que eles recolhem na areia.
Com isso, juntou tanto lixo que,
ao lado do bar, construiu uma casa só com garrafas de plástico descartável. Ela tem sala, quarto, banheiro com água corrente e cozinha. Cheias com três quilos de
areia, as garrafas viram paredes
"capazes de resistir a tiros de pistolas da PM, que veio aqui testar a
obra", diz ele. Vazias, formam clarabóias azuladas, cor de PET.
A casa, segundo o construtor,
está lá "só para afrontar". Mas, no
ano passado, o ambientalista
americano Jay Sherman, ex-diretor da fundação que recuperou a
baía de Chesapeake, esteve ali para fotografá-la. Numa terra onde
um programa de US$ 918,9 milhões chega ao décimo aniversário sem ter muito o que mostrar,
os R$ 600 que Oliveira investiu em
um mês para se livrar do lixo não
deixam de ser uma prova material
de que despoluir a baía é questão
de vontade.
O jornalista MARCOS SÁ CORRÊA é colunista do site No Mínimo. Foi editor-chefe do "Jornal do Brasil", diretor de Redação de "O Dia", além de colunista das revistas "Veja" e "Época"
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