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DANUZA LEÃO
Uma infância eletrizante
Será que tem alguma graça
ser criança hoje em dia? Elas
parecem adultos em miniatura;
gostam de computadores e de carros, sabem as marcas, os preços, e
como se não bastasse, agora sabem também onde se come o melhor sushi da cidade.
Crianças sempre gostaram de
participar do mundo dos grandes
e ouvir as conversas dos adultos,
pescando o que é dito por eles.
Mas será que é bom que saibam
de tudo, do tio que era rico mas
um dia se deu mal e foi preso à razão pela qual os pais estão se separando? Como já passou o saudoso tempo em que se podia dizer
"vá para o quarto porque isso é
conversa de adulto", eles estão
por dentro de tudo que se passa
na casa e no mundo, o que às vezes complica.
Como explicar a uma criança o
sorriso de prazer com que a soldado americana olha para os presos
iraquianos nus, uns em cima dos
outros? Como explicar as taras, a
perversão e o sadismo a quem
ainda não tem 10 anos?
Eu tive a sorte de ser criança
numa cidade pequena, e naquela
época estávamos mais interessadas nas nossas brincadeiras do
que nas conversas sérias (e chatas) de nossos pais.
Meu pai não era pobre, mas eu
só tinha dois sapatos: um preto,
amarradinho, de ir ao colégio, e
outro de usar aos domingos para
ir à missa e aos aniversários; o
resto do tempo andava descalça.
Vestidos eram dois (para poder
lavar), bem modestos, e um de
domingo, todos feitos por uma tia
que tinha jeito para costura. Era
assim com todas as meninas, e
não tem nada a ver, mas eu lembrei agora que a roupa, depois de
lavada, era banhada numa bacia
com água e anil. Será que alguém
sabe o que é anil?
A missa aos domingos era obrigatória, e a confissão acontecia
no sábado à tarde, para comungar na manhã seguinte. E a partir
da penitência - nunca mais do
que 3 ave-marias e 2 padre-nossos -, era preciso o maior cuidado para não pecar, nem em pensamento. Se acontecesse, a hóstia,
se batesse no dente, podia sangrar, olha a inocência.
Quando acabava a missa, íamos visitar algum parente, fazendo hora para o almoço, que nesse
dia era mais especial. Tinha, obrigatoriamente, arroz de forno, coberto por pó de rosca e enfeitado
com rodelas de ovo cozido, frango
assado ou ensopado e às vezes um
pernil. Nesse dia não se comia feijão. Os legumes eram poucos, alface zero, e o tomate era raro. Tão
raro que, quando se queria dar
cor às comidas, se usava urucum,
que não tinha gosto de nada mas
soltava um vermelhão forte. De
sobremesa, pudim, e como era domingo, com uma ameixa.
A geladeira tinha uma bola em
cima (era o motor) e ficava na sala, para todo mundo ver que a
gente tinha uma.
Eu tinha nove anos quando minha mãe ficou grávida, mas ninguém me explicou nada, e eu estava ocupada demais com as minhas brincadeiras para notar que
a barriga dela estava crescendo.
Um dia entrou uma senhora na
nossa casa, se trancou no quarto
com a minha mãe e algumas horas depois saiu de lá com uma
menininha enrolada nuns panos,
que disseram ser minha irmã.
Como irmã mais velha, eu repetia com ela tudo que haviam feito
comigo, e quando ela tinha uns
cinco anos, o primeiro dentinho
ficou mole. Peguei uma linha do
carretel, numa ponta amarrei o
dente, na outra a maçaneta da
porta, e aí bati a porta com força.
O dentinho saiu e no lugar ficaram duas gotinhas de sangue. Minha irmã chorou muito e durante
uma semana a família não falou
de outra coisa.
E-mail - danuza.leao@uol.com.br
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