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ENTREVISTA DA 2ª/RAQUEL ROLNIK
Relatora da ONU vê "esquizofrenia" em política federal para a habitação
Ex-secretária do Ministério das Cidades diz que o governo fez opção pelo crescimento sem planejamento
RECÉM-EMPOSSADA na relatoria especial para
o direito à moradia da ONU (Organização das
Nações Unidas), a arquiteta e urbanista Raquel
Rolnik, 51, enxerga um paralelo entre as políticas de habitação e as de meio ambiente do governo federal. A opção pelo crescimento sem planejamento, de acordo com a
arquiteta, já causa problemas sérios no país. Um desses problemas, segundo Rolnik, é o agravamento do trânsito nas grandes cidades brasileiras.
CONRADO CORSALETTE
DA REPORTAGEM LOCAL
Raquel Rolnik afirma ter deixado o comando da Secretaria
de Projetos Urbanos do Ministério das Cidades, neste ano,
justamente por discordar dessa
política "esquizofrênica" do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
A arquiteta assumirá no segundo semestre uma cadeira
na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da USP (Universidade de São Paulo).
De São Paulo, Rolnik tocará
seus trabalhos para a ONU. Seu
primeiro relatório, que será
apresentado no mês de outubro, em Nova York, vai abordar
o impacto do aquecimento global e da crise imobiliária dos
Estados Unidos nas questões
de moradia.
Leia, a seguir, trechos da entrevista dada por Raquel Rolnik
à Folha:
FOLHA - Quais serão os temas de
seu primeiro relatório para a Organização das Nações Unidas?
RAQUEL ROLNIK - Vou dar seqüência na divulgação de um
guia elaborado por meu antecessor [o indiano Miloon Khotari] para que direitos sejam
respeitados em casos de despejo ou remoção. E quero trabalhar temas emergentes. O primeiro é a conseqüência das mudanças climáticas na questão da moradia. Há o caso de
Nova Orleans [cidade do sul
dos Estados Unidos devastada
pelo furacão Katrina, em
2005]. Ainda hoje muitas vítimas da inundação estão sem
abrigo. O segundo é a crise imobiliária. Ela é tratada como instabilidade do sistema financeiro, mas tem outra dimensão: pessoas não conseguem pagar
suas casas e estão na rua. E vamos trabalhar um tema caro ao
Brasil: os grandes eventos esportivos, como as Olimpíadas e
a Copa do Mundo. Eles mobilizam muito investimento público e privado num período concentrado, o que pode resolver questões de moradia.
FOLHA - Como a sra. vê o pós-Pan
do Rio?
ROLNIK - Ficaram basicamente
equipamentos esportivos, que
são importantes. Mas o que
melhorou na condição de vida
de quem vive na cidade do Rio,
que atravessa uma crise urbana
grave? Eu acho que isso é uma
pauta para a Copa do Mundo de
2014, no Brasil. Será uma oportunidade para enfrentar questões urbanísticas, dentre elas a
da moradia. Nós teremos a
chance de mobilizar recursos
nas favelas e na integração de
espaços das cidades.
FOLHA - Fala-se em ausência de Estado nas favelas. Mas, quando o Estado chega, às vezes intervém de maneira desastrosa, como aconteceu recentemente no morro da Providência, no Rio.
ROLNIK - No Brasil, boa parte
das pessoas não tem acesso a
um lugar adequado, formal, conectado aos equipamentos e
serviços da cidade. Sem renda,
não lhes resta alternativa: ocupam locais onde o mercado
imobiliário não chegou por impedimento legal ou físico. Não é
por acaso que as favelas estão
em morros ou áreas de preservação ambiental. Isso cria uma
ambigüidade: por estar em situação irregular, seu direito de
ter acesso a serviços públicos é
sempre negociado com as autoridades, não é um direito automático. E eu não concordo com
a afirmação de que o Estado está ausente. Ele está presente,
mas de forma seletiva, não universal. A situação é explorada
politicamente: troca-se o investimento pelo voto.
FOLHA - O que a sra. acha do projeto de urbanização de favelas do PAC
[Programa de Aceleração do Crescimento]?
ROLNIK - Nós temos de saudar
esse investimento, que é incomum no Brasil. Para que todas
as favelas sejam urbanizadas,
nós vamos precisar manter esse ritmo por muitos anos. Mas é
importante regularizar as favelas plenamente, com investimento urbanístico, ambiental,
administrativo e patrimonial,
para acabar com a ambigüidade. Então a favela vira bairro. É
preciso ainda parar a máquina
de produção de favelas que
existe no país.
FOLHA - Como se pode, na sua opinião, parar essa máquina de produção de favelas?
ROLNIK - O subsídio ao crédito
é uma novidade no Brasil e chegou às famílias com renda na
faixa de quatro, cinco salários
mínimos, pelo mercado privado, inclusive. Mas a maior parte
do déficit habitacional está entre as que recebem de zero a
três salários. E o aumento da
disponibilidade de crédito está
gerando o aumento do preço
dos terrenos. Não há controle
urbanístico e de proteção a
áreas de interesse social como
em países civilizados -é por isso que ainda existe pobre morando em Nova York. O PAC relega esses aspectos. Os pobres estão de fora de novo, e novas
favelas se formam.
FOLHA - A área de habitação vive o
mesmo problema da área ambiental, com falta de sustentabilidade?
ROLNIK - Existe uma esquizofrenia. O governo fez um esforço para implementar o Estatuto das Cidades, com ferramentas de intervenção no mercado
de solos. Mas, na hora em que
os recursos mais vultuosos para habitação saíram, essa pauta
foi relegada. Não existe uma estratégia nacional para definir
investimento e incorporar os
planos diretores. Uma ou outra
cidade incorporou, porque atores locais pressionaram, mas
não houve a priorização do investimento sustentável. De
certa maneira, existe semelhança, sim, com a questão ambiental.
FOLHA - O que isso pode gerar em
10, 15 anos?
ROLNIK - Um monte de apartamento vazio. Nosso déficit habitacional é de cerca de 7 milhões de unidades. E nós temos
6 milhões de casas e apartamentos vazios no Brasil. Não
existe um projeto público para
orientar investimento privado.
Existe ainda outro aspecto:
com crescimento econômico,
cidades vivem uma crise de
imobilidade.
FOLHA - Os problemas no trânsito,
por exemplo, são o tema da vez em
São Paulo.
ROLNIK - Em São Paulo e em todo o Brasil, pois o modelo urbanístico das cidades não está na
pauta. Enquanto o centro das
cidades está cheio de apartamentos vazios, um tipo de produto imobiliário faz sucesso: os
condomínios de classe média e
alta em lugares distantes. Todos dependendo do automóvel.
Essa crise pode levar à imobilidade. Não tem a ver com falta
de investimento em transporte
coletivo. Tem a ver com o modelo urbanístico.
FOLHA - A cidade pode ser vítima
do crescimento econômico?
ROLNIK - É possível ter um desenvolvimento includente.
Mas nosso país é primitivo nesse ponto de vista, ainda é marcado pela herança escravocrata, onde se acha que casa para pobre tem de ficar na periferia.
Nossa elite tem essa visão, e a
máquina do Estado está montada para perpetuá-la. A violência nas favelas é sua dimensão
mais cruel.
FOLHA - Sua saída do Ministério
das Cidades tem a ver com opções
do governo?
ROLNIK - A secretaria [de Projetos Urbanos] foi perdendo recursos e importância. Minha
saída tem a ver, sim, com essa
perspectiva. A agenda de reforma urbana que orientou a criação do Ministério das Cidades
teve impulso nos dois primeiros anos do governo, só que depois minguou. Mas ainda ficaram os atores envolvidos. Um
grande feito foi manter viva a
interlocução com a sociedade.
O Conselho das Cidades está
ativo, e isso é importante.
FOLHA - O seu antecessor na relatoria da ONU dedicou atenção especial à reserva Raposa/Serra do Sol, em Roraima. A sra. é a favor da demarcação contínua?
ROLNIK - Eu não tenho dúvida
sobre os direitos dos índios. Eu
sou a favor da demarcação contínua. Dizer que é muita terra
para poucas pessoas é uma balela quando temos latifúndios
maiores do que a Bélgica nas
mãos de um só proprietário.
FOLHA - Que experiência na área
moradia do Brasil pode ser levada
para o resto do mundo?
ROLNIK - No campo institucional e legal, nós somos um
exemplo. O direito à moradia
está escrito em nossa Constituição, nós temos o Estatuto
das Cidades e temos também o
sistema de habitação de interesse social.
FOLHA - Nós estamos bem só no
papel?
ROLNIK - Nosso grande desafio
é implementação, implementação, implementação... A singularidade do Brasil que chama a
atenção de vários países do
mundo é o fato de que todo esse
processo de constituição institucional foi feito com muita
participação popular. Nós somos uma referência para o
mundo. Eu tenho certeza de
que a minha indicação como
relatora [da ONU para o direito
à moradia] tem menos a ver
com minha trajetória específica e mais a ver com a essa construção coletiva.
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