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SP 450
"Oásis" que abriga casa e biblioteca de empresário é remanescente da época em que bairro era uma zona rural
Bibliófilo vê meio século de transformações no Brooklin
CYNARA MENEZES
FREE-LANCE PARA A FOLHA
O empresário e bibliófilo José
Mindlin, 89, estava viajando naqueles dias de 1976 em que o pânico tomou conta dos moradores
da zona sul. Dizia-se que a represa
de Guarapiranga, cheia a mais
não poder, iria transbordar, inundando toda a região do Brooklin
Paulista, onde estão sua casa e sua
famosa biblioteca, hoje com 32
mil volumes. Na cabeça de dona
Guita, mulher dele, só passou então um pensamento: que livro salvar? Decidiu-se pela primeira edição ilustrada do poeta italiano
Francesco Petrarca (1304-1374) ,
uma raridade de 1488.
A barragem acabou sendo reforçada com sacos de areia e o desastre, evitado, mas, de certa forma, o Brooklin foi realmente
inundado, e não por água. É dessa
mesma década o início da expansão imobiliária do bairro, que rodeou de construções novas a residência adquirida pelo casal em
1947, quando tudo ali era zona rural. Hoje é um "oásis", como Mindlin diz, em plena selva de concreto: dentro, numa área de mil metros quadrados, jabuticabeiras e
orquídeas; fora, automóveis, asfalto e arranha-céus.
Foi o verde do terreno que encantou Mindlin, porque a casa tinha apenas dois quartos e o Brooklin era considerado distante pelos padrões de então. A família
não gostou nada. "Falavam: "Por
que morar tão longe?" Mas a alternativa que tínhamos era uma casa
geminada nos Jardins, mais cara
e... sem jardim."
Tanto Guita como Mindlin nasceram no Paraíso. A família dele,
semanas depois do nascimento,
mudou-se para a Vila Mariana,
onde o pai, "tido como o melhor
dentista de São Paulo", comprou
um casarão.
Quando se casou, em 1938, Mindlin foi morar no centro, em um
prédio de apartamentos. Em 1942,
passaria a viver em um edifício
moderno, projeto de seu irmão, o
arquiteto Henrique Mindlin
(1911-1971), na Vila Mariana,
atualmente descaracterizado.
Até 1950, quando ajudou a fundar a indústria de autopeças Metal Leve, vendida em 1996, Mindlin exerceu a profissão de advogado. Foi num passeio de bonde
até o Brooklin para visitar um
cliente, seu futuro sócio na empresa, que conheceu a casa.
"Nós adoramos o bairro e,
quando ele [o sócio] se mudou de
lá, me deu a opção de compra",
conta. Mindlin, que pagava 750
réis de aluguel no apartamento,
achou um bom negócio adquirir a
casa por 2.100 réis, financiados
em 20 anos.
E foi mesmo. Passados 12 anos,
a passagem de bonde até a praça
da Sé para pagar a prestação era
mais cara do que o valor da própria mensalidade -algo em torno de R$ 2 em valores atuais, ele
calcula-, e o casal resolveu quitar o imóvel.
Hoje, Mindlin estima que a casa
valha seis vezes o que pagou. Ainda mais porque sua propriedade e
a vizinha são as únicas daquele lado da rua Princesa Isabel que não
se tornaram escolas ou estabelecimentos comerciais -e o que não
faltam são propostas de compra.
Mas, quando ele, a mulher e os
três filhos -a mais nova nasceu
na casa- se mudaram para lá, a
rua não era calçada e não havia
iluminação. Os primeiros sete
anos foram passados sem telefone. Mindlin ia telefonar em um
bar, onde seu olhar astuto de colecionador um dia acabou pousando sobre algumas garrafas encobertas de pó na prateleira: eram
vinhos antigos, alguns de 1909,
que estavam lá esquecidos pelos
donos. "Cheguei em casa com 12
garrafas", lembra.
As ligações feitas do bar, segundo o empresário, eram cobradas
como interurbanas. "O Brooklin
era como uma cidade do interior,
todo mundo se conhecia."
Ampliação
Com o tempo, o bairro ao redor
foi se transformando -e a casa
com ele. Logo que se mudaram,
os Mindlin fizeram uma reforma
na pequena edificação, adicionando outros dois quartos e toda
a parte de serviços. O pavilhão da
biblioteca foi erguido em 1965, e
sua parte subterrânea seria escavada no gramado 20 anos mais
tarde, quando o pé de louro que
havia no jardim, "intocável",
murchou e morreu.
A cerca viva virou um muro de
2,5 metros de altura, isolando a
propriedade desde que foi achada
uma jararaca pelo jardineiro e que
outro tipo de serpente deu mostras de rondar por ali: em 1985,
Mindlin teve seu carro interceptado por assaltantes, que o fizeram
voltar para casa, onde achavam
que havia dinheiro. O casal passou por momentos de sufoco até
eles desistirem do plano.
Na esquina de baixo da casa do
bibliófilo, a avenida Água Espraiada trouxe, durante os três
anos de sua construção, outro inconveniente da vida extramuros.
"Foi uma poeira absurda", relembra. Mindlin conta que ali havia
uma favela "muito inconveniente", ponto de tráfico de drogas.
"Paravam carros de luxo o tempo
todo. Eles também roubavam carros, e nosso motorista acabou fazendo um acordo com os bandidos para nos poupar."
A Água Espraiada, com 4.550 m,
ligando a marginal Pinheiros à
avenida Washington Luís, foi
construída na última administração de Paulo Maluf (1993-1996).
Levou esse nome por causa do
córrego homônimo, canalizado
na obra. O bibliófilo diz que,
quando encontra o ex-prefeito,
ele sempre pergunta para dona
Guita: "A senhora está satisfeita
com a avenida? Gostou da retirada da favela?" Mindlin faz pouco
caso: "Continua cheio de favelas
ali. O Maluf eliminou uma e escondeu as outras".
A modernização das vias deixou
próximo o aeroporto de Congonhas, inaugurado em 1936. Antes,
diz, era preciso enfrentar um "labirinto" de ruas, trajeto que atualmente faz em 10 minutos. Por outro lado, em alguns dias, o bibliófilo leva até uma hora para ir da
avenida Paulista para casa.
Nos anos 40, a Vasp tinha só
dois vôos para o Rio, às 7h e às
15h. "Dava para acertar o relógio
pelo barulho da aeronave", suspira Mindlin, interrompendo a prosa para esperar passar sobre o jardim, de forma ensurdecedora,
um dos aviões que, às dezenas,
decolam e pousam a cada dia no
aeroporto.
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