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OPINIÃO ECONÔMICA
O mistério do consumo de massa
RUBENS RICUPERO
Como explicar que, em país
com desemprego alto e erosão
da renda média, haja 53 milhões
de telefones portáteis e que nada
menos que 1,5 milhão deles tenham sido comprados no período
de vendas do Dia das Mães? No artigo de Mac Margolis "Profit and
Poor", na "Newsweek" (19/07/04),
em que constam esses dados, sugere-se explicação. O aumento de
quase 20 milhões de aparelhos em
dois anos deve-se, em quase 80%,
aos pré-pagos, aparelhos básicos
com cartões de chamadas pagas e
prestações mensais baixas.
Esse é apenas um dos exemplos
mais espetaculares da verdadeira
explosão de consumo de massa no
Brasil e em alguns outros países da
América Latina, que vem sendo
documentada e estudada de modo
pioneiro pelo Instituto Fernand
Braudel de Economia Internacional. Associado à Fundação Armando Alvares Penteado, o instituto tem como diretor-executivo
meu amigo Norman Gall. Nova-iorquino da gema, nascido e crescido numa das áreas de maior vitalidade popular da "Capital do Século 20", Norman tornou-se um paulistano integral, cidadão de Higienópolis empenhado em melhorar a
vida dos adolescentes da periferia
com idéias práticas como os Círculos de Leitura.
Conheci-o quase 30 anos atrás,
em Washington. Ele preparava então um estudo sobre o programa
brasileiro de energia nuclear. Fascinou-me sua cultura enciclopédica sobre economia internacional, e
logo descobrimos afinidades na
paixão pela abordagem da chamada história global, a riqueza humana da América Latina, a música, nossa origem comum de descendentes de imigrantes criados
em ambiente de metrópole, ele, no
Bronx, eu, no Brás.
Justamente por haver escapado à
burocratização do conhecimento
na universidade e ter optado por
"vivere pericolosamente", sem segurança econômica, mas em contato com a realidade empírica dos
mais diversos países do continente,
ele preservou uma originalidade e
frescor de inteligência que o colocam sempre "adiante da curva". Isto é, em vez de chover no molhado
e repetir o que todo mundo diz, ele
está constantemente identificando
histórias novas que ocorrem debaixo do nariz do establishment universitário e jornalístico, mas passam quase despercebidas. Foi assim quando começou a escrever,
nos anos 60, sobre a fronteira agrícola, então no início de sua marcha
inexorável para o oeste.
A ele se devem também algumas
das primeiras pesquisas sobre as
comunidades de pobres imigrantes
bolivianos e peruanos, muitos
clandestinos, trabalhando nas pequenas indústrias de confecções
operadas por coreanos no Bom Retiro. O trabalho mereceu consagrador artigo de Mario Vargas Llosa,
que se comoveu com histórias que
lhe fizeram recordar a sina de sua
própria mãe em Los Angeles.
É desse mesmo tipo o programa
que o instituto desenvolve sobre
instituições para consolidar a democracia de massas na América
Latina. Para isso, dispõe Norman,
em caráter pessoal, de vantagem
comparativa inigualada entre nós:
uma riquíssima rede de amigos intelectuais e homens públicos, em
países latino-americanos que a
média dos brasileiros desconhece
por completo. Desse programa faz
parte uma pesquisa sistemática sobre a democratização do consumo,
sobretudo nas periferias paupérrimas das grandes cidades.
Conforme é apropriado para instituto com nome tão prestigioso,
parte-se da observação de Fernand
Braudel acerca da contínua expansão do número de consumidores como uma das tendências estruturais de longo prazo no avanço
da civilização. Curiosamente, na
Inglaterra do princípio da Revolução Industrial, no século 18, aconteceu algo semelhante à nossa
atual experiência: a demanda começou a crescer, apesar da queda
em renda real. A razão foi idêntica
à de hoje: a diversificação e, principalmente, o barateamento da oferta dos artigos de consumo, devido
à produção em escala industrial.
Uma das observações interessantes do estudo é que, no Brasil, até
fins dos anos 80, cerca de 75% do
consumo de bens duráveis era monopolizado pelas classes abastadas.
O êxito do real em pôr fim à inflação crônica desencadeou processo
que impulsionou os pobres -as
classes C, D e E, das análises de
marketing- a saltarem para 42%
do consumo nacional. Entre 1999 e
2003, por exemplo, a participação
dos pobres no mercado de cartões
de crédito elevou-se de 10% a 21%,
e o uso de cartões nos supermercados cresceu 1.250% em cinco anos!
Hoje em dia, 85% dos lares brasileiros possuem geladeira, e 89%
têm televisão. Os modelos mais baratos de carros correspondem a
70% das vendas, das quais 75%
com financiamento.
A transformação de barracões
precários em casas de tijolos, pelo
trabalho dos próprios moradores,
fez com que as favelas urbanizadas
se tornassem caras demais para famílias que ganham menos de dois
salários mínimos por mês. Os mais
pobres são obrigados a ocupar a
"periferia da periferia", zonas de
condições sanitárias e de segurança de alta periculosidade, erroneamente generalizadas à periferia
como um todo. Esta, apesar dos
pesares, beneficiou-se dos investimentos em infra-estrutura de algumas administrações, entre as
quais destacou-se a do saudoso
Mário Covas, que destinou à área
70% dos seus gastos. O balanço
nacional retratado pela Pnad do
IBGE de 2001 é que a proporção de
casas brasileiras com eletricidade
alcançou 96%, e a das que desfrutam de coleta de lixo, 83%.
O fenômeno não é restrito às zonas metropolitanas do Brasil. Cidades como Lima e La Paz apresentam tendência similar, ao passo que o movimento parece ter-se
estancado em Buenos Aires e Caracas. A realidade latino-americana é multiforme e não se presta a
generalizações simplistas.
Pouco conhecemos ainda dessa
realidade que se transforma debaixo de nossos olhos. Quantos de
nós já visitaram a "periferia da periferia"? O que sabemos da existência cotidiana de nossos conterrâneos, que ali tentam extrair alguma alegria de suas vidas apertadas? O que explica o mistério da
explosão do consumo de massa,
apenas a oferta de produtos modestos e baratos? O que sucede do
lado da demanda, do emprego, da
renda? Será que o comportamento
político surpreendentemente conservador de partido como o PT,
originário da antiga periferia do
ABC, não reflete esse fenômeno?
É isso o que o Instituto Braudel
se propõe a investigar in loco, convencido de que da resposta a essas
perguntas vão depender a consolidação e o aperfeiçoamento da democracia de massas no Brasil e na
América Latina.
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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