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OPINIÃO ECONÔMICA
O prêmio da coragem
RUBENS RICUPERO
Nunca antes houve unanimidade igual nos editoriais
principais do "Wall Street Journal", do "Financial Times" e do
"New York Times". Direita, centro e centro-esquerda, todos, no
dia 28, quarta-feira, aplaudiram
a sentença em favor do Brasil, no
caso dos subsídios ao algodão dos
EUA.
Mas, se é assim unânime a condenação da prática, até num dos
países que mais a utilizam, como
explicar que ela não acabe? E, se
todos pensam que os subsídios
são errados, por que custou tanto
para condená-los na OMC (Organização Mundial do Comércio), e
isso apenas após o Brasil ter tido a
ousadia de contestá-los num processo?
A resposta é muito simples: a
unanimidade é parcial, inclui os
economistas, especialistas em comércio, analistas de boa-fé. Não
se estende, porém, aos beneficiários dos subsídios e políticos que
os protegem. Foi por isso que o assunto provocou um pronunciamento pouco habitual do próprio
porta-voz da Casa Branca: o governo não hesitará em lançar
mão de qualquer meio para continuar a apoiar os produtores.
Não se pense que sejam pequenos
proprietários pobres. A imensa
maioria é formada pelos "barões
do algodão", do National Cotton
Council, o mais poderoso lobby
agrícola norte-americano. Quase
todos do Texas e do Mississippi,
base da atual administração.
Em outras palavras, uma coisa
é o processo socrático da busca da
verdade, a teoria do livre comércio de David Ricardo e de seus
modernos epígonos, que alimenta
a ideologia oficial dos EUA e de
outros países. Outra, não só diferente mas oposta, é a prática que
possibilita aos americanos controlar mais de 40% do mercado
exportador algodoeiro, não obstante um elevado custo de produção. É uma questão não de justiça
e verdade, mas de interesse econômico traduzido em termos de
poder. O Tesouro de Washington
despende, em média, de US$ 3 bilhões a US$ 4 bilhões por ano para subsidiar o algodão. Entre 1999
e 2003, os cotonicultores embolsaram US$ 12,47 bilhões do governo, enquanto o valor total da safra foi de US$ 13,94 bilhões, isto é,
uma taxa de subsídio de 89,5%
ou quase 90%! Em 2002, os subsídios foram superiores ao valor da
colheita, mais de 100%!
Sendo assim tão evidente a
aberração, não teria sido natural
que outros países, maiores produtores e exportadores de algodão
que o Brasil, tivessem tomado a
iniciativa de abrir um processo
havia mais tempo? Por que não o
fizeram? Aqui a resposta é simplesmente o medo, medo de todo
o gênero. O primeiro é o medo de
perder, porque as regras da OMC
em matéria agrícola são péssimas. A OMC saiu do Gatt -e esse
foi, durante muito tempo, um clube exclusivo de países ricos interessados apenas na redução das
tarifas sobre produtos industriais.
Não lhes interessava -e isso permanece verdade até hoje- liberalizar a agricultura, protegida
por todos eles e que, na época da
constituição do Mercado Comum
Europeu, era o compromisso político indispensável à participação
da França, a mais favorecida pela
Política Agrícola Comum de Bruxelas.
É significativo, no entanto, que
o primeiro ato fatal para excluir a
agricultura das regras comerciais
do Gatt tivesse sido um "waiver"
ou exceção, concedida aos EUA
no início dos anos 50, há meio século, portanto. A situação foi
agravada, anos mais tarde, por
uma sentença permitindo que
produtos elaborados, como a farinha de trigo ou o azeite de oliva,
fossem considerados agrícolas e
primários, dispensados, assim,
das disciplinas incidindo sobre as
manufaturas. É essa a origem
longínqua da mais grave assimetria e injustiça do sistema comercial: a desigualdade de tratamento entre os produtos industrializados -para os quais, na prática, todos os subsídios são proibidos- e os agrícolas, nos quais a
maioria das subvenções continua
a ser legal e inobjetável porque esse status viu-se consagrado na
Rodada Uruguai.
Quando a lei é ruim, por melhor
que seja o advogado, é difícil ganhar o processo. Ainda mais tendo do outro lado o país mais poderoso do mundo, com centenas
de advogados e economistas para
influenciar a OMC e dinheiro a
rodo. O Brasil teve de valer-se de
uma brecha estreita, não na lei,
mas na prática. Não contentes
com os bilhões de subsídios autorizados de mão beijada na Rodada Uruguai, os vorazes cotonicultores ianques exigiram o fruto
proibido das vantagens ilegais.
Como provar, contudo, um segredo guardado a sete chaves? Até
fins de 2002, o governo de Washington recusou-se a fornecer à
OMC os dados sobre produção,
alegando que não os tinha. Quase
por milagre, um jovem estudante,
membro da equipe brasileira,
descobriu, num trabalho de detetive, que existia em Kansas City
um banco de dados do próprio
Usda (Ministério da Agricultura
americano) com dados minuciosos sobre cada fazenda beneficiada. Também ajudou muito o estudo econométrico do professor
da Universidade de Davis, da Califórnia, Daniel Sumner, um dos
maiores especialistas no tema, ex-funcionário oficial, tratado como
traidor pelos barões do algodão.
O medo, entretanto, persistiu.
No caso, medo de quebrar financeiramente, pois os processos na
OMC custam somas astronômicas em advogados e pesquisa de
apoio. O que nos salvou foi a disposição da entidade nacional dos
produtores de algodão de bancar
os custos heroicamente porque,
em certo momento, as coisas ficaram pretas. É esse um dos melhores exemplos que conheço no Brasil de o setor privado juntar-se ao
setor público, com recursos humanos e financeiros, para lutar
uma batalha comum. Aliás, é esse
um dos aspectos que mais me alegram o coração de brasileiro, para roubar uma expressão de Domício da Gama.
É essa natureza de obra comum
e coletiva que me encoraja, dos
produtores e do governo, mas
também dos governos, isto é, do
anterior e do atual. Sim, porque é
preciso não esquecer que a iniciativa do processo em açúcar, deste
e do ainda não-concluído contra
a União Européia, partiu do governo passado e do ministro Celso
Lafer, que criou no Itamaraty todo um setor novo de contencioso,
confiando-o às mãos competentes
de Roberto Azevedo. O governo
presente e o ministro Celso Amorim levaram avante o esforço com
decisão e espírito de continuidade, colhendo agora os resultados.
No artigo "Uma guerra justa"
(14/04/02) eu saudava, nesta mesma coluna, a decisão corajosa de
iniciar os processos, merecedora
de apoio, para ganhar ou para
perder, já que os riscos eram
grandes. Hoje, aplaudo todos os
batalhadores dessa campanha,
que, conforme escrevi então, poderá levar a "decisão histórica,
capaz de mudar para sempre alguns dos desequilíbrios mais gritantes do sistema mundial de comércio".
Rubens Ricupero, 67, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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